NUM OLHAR À DANÇA CABOVERDIANA
Cabo Verde nunca teve, e, creio que nunca terá, a tradição de dança clássica, que, para ser praticada, tem de ser cultivada, praticamente desde o berço.
Entretanto, é preciso dizer que a dança, como manifestação cultural espontânea do povo caboverdiano, nasceu com a própria formação da sociedade caboverdiana.
Resultante de uma miscigenação racial e cultural, vamos encontrar em Cabo Verde, desde os primórdios, como danças tradicionais Caboverdianas, de origem popular, o Batuque, em que se nota, nitidamente, o pendor africano no movimento sensual erótico das dançarinas que meneiam as ancas, ao som de ritmos marcados pela percussão e pelo coro de vozes; a Tabanka e o Kolá, produtos de um sincretismo religioso e cultural, em que o erotismo e a sensualidade se encontraram também bem marcados, e as danças de salão, importadas da Europa, que ao longo dos tempos foram sofrendo alterações ao ponto de serem consideradas danças caboverdianas, casos da Mazurca, da Valsa, da Contradança, etc.
Nas vésperas da independência nacional, já havia em Cabo Verde algumas outras danças de salão, que surgiram com o aparecimento de novas músicas no dia-a-dia de diversão da população caboverdiana, nomeadamente:
a Morna e a Coladeira, a primeira lenta e sensual; a segunda movimentada e alegre, e que eram dançadas aos pares, enlaçados.
Com a independência, apareceram muitas danças africanas, em sintonia com a situação política de então, que invadiram os palcos caboverdianos, ao lado da recuperação e estilização das danças tradicionais caboverdianas, de entre as quais se destaca o Funaná, a música de ferro e gaita, que teve grande repercussão em todo o arquipélago, principalmente após a sua estilização pelo conjunto Bulimundo.
É de se notar, contudo, que essas danças nada mais representavam do que uma forma de diversão e de necessidade espiritual de descontracção emocional, pelo que a sua linguagem não carecia de qualquer tipo de mensagem ou de uma gramática elaborada com fins artísticos, enquanto dança.
Com o passar dos tempos, começaram a aparecer escolas de dança em Cabo Verde, que centravam a sua formação no ballet clássico, o qual foi prato forte da escola de dança da JAAC-CV, dirigida pelo dançarino Daniel Rocha, que se formara no Senegal, na escola de dança fundada pelo célebre coreógrafo Maurice Bejart.
Pioneiro na tentativa de criação de uma dança moderna caboverdiana, utilizando como técnica de base o ballet clássico, Daniel Rocha acaba por protagonizar a formação de várias gerações de dançarinos que vieram a criar vários grupos de dança, cuja preocupação fundamental é recuperar danças tradicionais caboverdianas a fim de torná-las cada vez mais artísticas e verdadeiros espectáculos. Isto, com excepção de alguns grupos de dança de São Vicente, que exploravam o rico filão das danças estrangeiras, que se impunham no momento.
E é nessa conjuntura que aparece o Grupo Cultural Ballet Renato Cardoso dirigido por Jorge Sousa e Lena Semedo.
Esse grupo dedicou-se durante algum tempo, com afinco, à dança, tendo ganhado uma medalha de ouro e uma taça para a melhor coreografia no primeiro Concurso Internacional de Dança de Algarve, onde participaram vários grupos da Comunidade Europeia e de vários países de expressão portuguesa, inclusive Portugal e Grã-Bretanha.
É de se destacar também, nesse âmbito, o grupo de dança Bibinha Kabral que marcou a época com a transposição da dança tradicional para o palco, tendo realizado vários espectáculos na Praia, no interior de Santiago e em algumas ilhas, tendo também ganhado alguns concursos
nacionais de dança.
E é dessa forma que o público caboverdiano foi ganhando gosto aos espectáculos de dança,
o que motivava o surgimento de novos grupos e de novas linguagens de dança, até que, recentemente, surgiu o grupo Raiz di Polon com a proposta de criação de um idioma contemporâneo de dança, ocupando assim uma posição de vanguarda no que concerne à criatividade
coreográfica e artística.
A ideia da fundação do grupo Raiz di Polon partiu de 5 a 6 pessoas, que já estavam habituadas a fazer dança em grupos diferentes, e que, na altura, não pertenciam a nenhum grupo. Reuniram-se, então, para que não ficassem parados, o que era impossível, na medida em que já tinham a dança no sangue.
Em 14 de Novembro de 1991, fundaram o grupo, integrando vários elementos para verem quem possuía qualidades para ficar, tendo, desde então, passado pelas suas fileiras mais de 40 elementos.
As condições, na altura, eram um pouco difíceis e tinham de ter força de vontade para poderem conseguir aguentar o grupo. Tinham dificuldades com o espaço de ensaio, mas, entretanto, conseguiram superar este problema com o apoio do conhecido artista plástico, o escultor Mário Rito, que lhes possibilitou o ensaio no Centro Social 1º de Maio.
Sem nenhum recurso financeiro, deram no duro, trabalhando com afinco, e, após três meses de ensaios, fizeram o seu primeiro espectáculo, a primeira actuação pública, que se traduziu num sucesso.
A partir daí, tudo ficou mais claro, e continuaram com denodo a sua tarefa, até que, um ano depois, deram um grande espectáculo no Parque 5 de Julho que foi um sensacional sucesso.
Inicialmente, no grupo havia apenas uma pessoa com formação que passara pela escola de dança da JAAC-CV, dirigida pelo dançarino Daniel Rocha. Por isso, pode-se dizer que começaram do zero, às apalpadelas, imitando algumas coisas importadas, ao mesmo tempo que tentavam criar algo próprio, até que começaram a caminhar, cada vez mais, na peugada do telurismo, da raiz caboverdiana pura. Apesar de se basearem muito no ballet, em termos coreográficos, tiveram sempre a preocupação de criar coisas a partir da terra, inspirando-se, fundamentalmente, nos aspectos tradicionais, utilizando músicas tradicionais, e temas e vivências genuinamente caboverdianas, como a Morna, a Coladeira, o Funaná, etc.
E é aqui que entra Uma História da Dúvida, criação de Clara Andermatt, coreógrafa e bailarina portuguesa, com quem o grupo Raiz di Polon entraria em contacto e começaria a edificar uma nova geografia de dança que o levaria além fronteira numa rota de brilhante sucesso.
Esse projecto, que pretendia ainda abarcar o vídeo-cinema, promoveu várias acções de formação aos artistas cabo-verdianos, tendo culminado numa apresentação pública, e, claro, na participação do grupo na Expo 98, em Lisboa.
Com o tempo, foram modificando a sua perspectiva artística, substituindo a preocupação primacial de trabalharem a dança de Cabo Verde pela dinâmica da cultura caboverdiana, através da dança, o que representa já uma evolução significativa, pois já não se preocupam apenas em estilizar as danças tradicionais, mas sim em veicular toda a arte e a cultura caboverdianas, através da linguagem expressiva da dança.
E, à medida que foram aperfeiçoando e descobrindo novos horizontes, mais vastos e mais exigentes, os elementos do grupo foram diminuindo, depurando-se, numa espécie de filtragem em que aqueles que não conseguiam aguentar o ritmo da caminhada iam saindo, até que ficaram os seis actuais bailarinos, mais três estagiários.
Dos vários trabalhos que têm apresentado, é possível verificar de facto esse itinerário telúrico em que Cabo Verde se encontra bem presente no seu todo, e não só a sua dança, o que é muito bom em termos artístico-culturais, por representar também uma maturação e uma harmonia significativa e benéfica para a alma. Já agora, após esse percurso, de um certo rigor, consideraram a sua dança como contemporânea, pois a linguagem do grupo é nitidamente contemporânea, tendo, sempre presente, Cabo Verde em tudo o que criam, ou que recriam: desde um simples olhar, um passo, ou um rodopio, até à música.
Entretanto, a expressividade desse Dançar Cabo Verde está revestida de artisticidade e de universalidade que fazem com que as suas coreografias ganhem uma face nova, cheia de brilho e de profundidade, ao ponto de não ser reconhecido, de imediato, num simples relance, o quotidiano cultural cabo-verdiano. Há como que uma transfiguração, uma metamorfose na raiz das imagens representadas, devido ao tratamento estético a que são submetidas.
Dançam com música ao vivo executada por um grupo musical, e apostam em músicas inéditas, criadas para o efeito, onde têm a vantagem de orquestrar tudo, consoante uma linha previamente determinada, que poderá ser mais lenta, mais rápida ou com pausas e cortes. Utilizam muitos sons para criarem o seu mundo coreográfico, desde o som de vozes, gritos, o arrastar e o bater dos pés, até à utilização de frases ou versos.
Inicialmente eram acompanhados pela electrizante música de Orlando Pantera, com quem deram vários espectáculos, mas ultimamente têm em Mário Lúcio o músico de arranjo e orquestração de uma nova linguagem artística, com um certo predomínio de músicas de inter-influência latina.
Pode-se dizer que passaram de uma fase notoriamente popular, folclórica, em que as coisas eram representadas tais como eram, sem grandes artifícios, para uma fase mais erudita, mais artística, em que a mensagem tem tanta importância quanto a linguagem, e em que o simbólico se sobressai como forma privilegiada de diálogo, donde o prazer da descoberta, do reflectir e do sentir, se sobrepõem ao prazer do olhar somente.
E um dos aspectos importantes que relevam também nos seus trabalhos é a relação entre o homem e a mulher cabo-verdianos, o seu amor forte, a sua guerra „pegada“. Mas, neste momento, a preocupação maior do grupo é integrar outras modalidades de arte na dança que fazem, tendo já experimentado, com sucesso, esse namoro, ao utilizarem poemas na sua dança, demonstrando assim que todas as artes estão relacionadas e que podem enriquecer-se mutuamente, quando interligadas com propriedade. Eles estão convictos de que existe uma atracção, ou um amor profundo entre as várias modalidades artísticas, que mais não precisam do que uma paixão, igualmente electrizante e cativante, para as unir, num desafio a um efeito surpreendente, cheio de beleza e de vibração. E é esse ideal que têm procurado ultimamente, empregando todas as suas energias, com toda a alma, neste programa.
Em toda essa luta, essa busca e esse empenho, quase delirante, à volta da dança, eles têm como objectivo máximo a comunicação, a interlocução com o público, e, por isso, têm procurado sempre veicular uma mensagem, uma palavra, uma história, através das suas mímicas e das suas pantomimas coreográficas, pelo que não se abdicam nunca da felicidade de uma dimensão estética, cada vez mais, malgrado a possibilidade de um certo hermetismo para o grande público.
Para além dessa preocupação em retratar as vivências íntimas dos consórcios e seus problemas em Cabo Verde, têm explorado também o rico veio das migrações.
No grupo, não existe uma diferença entre o homem e a mulher. Formam um corpo de bailado em que todos podem desempenhar um papel masculino ou feminino, sedutor ou agressivo, doce ou amargo, independentemente do sexo. E assim tem sido também a tónica do grupo no seu processo de criação e de funcionamento. Todos participam, todos sugerem, todos trabalham igualmente as peças que representam. Consideram-se um ser único.
Tendo em conta a importância que atribuem à expressão corporal e à narrativa nas suas criações, eles dão uma certa primazia às ideias, que previamente elaboram e que vão compondo ao longo dos ensaios, relegando a música para um segundo plano, como suporte das suas coreografias e não como elemento principal, pois que, podem até dançar sem música, desde que imprimam um ritmo e uma expressividade ao que querem transmitir.
O que não querem é correr o risco de o público aplaudir a música que está no top, em vez da dança que executam, como acontece com muitos grupos que utilizam músicas comerciais nos seus trabalhos.
Para eles, é muito importante a mensagem subjacente à sua dança e, por isso, uma boa coreografia é aquela que possui um fio condutor, uma linha de acção, consequente, e não um amontoado repetitivo de movimentos sem nenhum tema, nem sentido, nem nada.
Têm feito alguns trabalhos com intenção educativa e de chamada de atenção para certas situações sociais, ou atitudes, que prejudicam o próprio homem, pois que a humanidade, em geral, e o humanismo, em particular, estão sempre no centro das suas narrativas.
Para o êxito do grupo, concorrem o respeito mútuo, entre os seus elementos, a responsabilidade, a seriedade, a honestidade, e um esforço conjunto, traduzido num trabalho constante em busca de um aperfeiçoamento progressivo, sendo o sucesso, para eles, a apresentação de peças com qualidade, independentemente do agrado ou desagrado que possam suscitar. Por isso, têm apostado numa execução técnica e num estilo próprio, distanciado do ballet clássico, que não tem nada a ver com a realidade caboverdiana.
O grupo perspectiva, sempre, como objectivo principal, divulgar os seus trabalhos, não só em Cabo Verde, mas também em todo o mundo. E pensam, futuramente, criar uma escola de dança, para que o que aprenderam e fizeram até agora tenha continuidade e possam, assim, dar o seu contributo à cultura caboverdiana.
É de se destacar aqui que já dançaram em grandes palcos e já ganharam importantes prémios, desde o início da sua existência, em 1991, e, por isso, acham que podem representar Cabo Verde com dignidade em qualquer palco do mundo, tendo passado já por vários países da Europa, da África e das Américas – do Norte e do Sul.
Com mais de quinze anos de experiência, o grupo de dança Raiz di Polon tem conseguido pesquisar o manancial da cultura caboverdiana e criar, com artisticidade e esmero, obras de grande fôlego estético e temático, que nos toca a alma e o ser.
A sintonização com a modernidade contemporânea da dança, a expressividade e a entrega total, de corpo e alma, manifestadas nas coreografias que fazem, e na criação e interpretação das suas peças, com total liberdade de corpo e de acção, garantem ao grupo um lugar de destaque no panorama cultural cabo-verdiano.
Obras de mérito como: Até ao Fim, Petu, CV Matrix 25 e Konkista, todas apresentadas em Cabo Verde, e em vários outros países, são testemunhas desse percurso de labor e arte, coroado de êxito.
D.S.
Foto: Velu