Uma figura de proa na música caboverdiana
Foi a 01 de Março de 2001 que Orlando Pantera morreu vítima de uma pancreatite aguda, quando tinha tudo preparado para gravar o seu tema de ouro Lapidu na Bo, que certamente o catapultaria para o ranking dos melhores músicos e compositores de Cabo Verde, visto que o tema já estava em voga, com muito sucesso.
Foi depois de regressar a Cabo Verde, uma vez mais, com concertos no Centro Cultural Francês da Praia, no Mindelo e no Quintal de Música, na Praia, com três magníficos espectáculos, que o músico, compositor e intérprete, Orlando Pantera, teve o problema que o vitimaria.
Orlando Monteiro Barreto, ou simplesmente Orlando Pantera, era um jovem promissor que marcou a música caboverdiana, de forma especial, antes de morrer, nas vésperas da sua coroação através da gravação de um CD a solo.
Morreu num momento crucial da sua carreira, quando tinha tudo preparado para o grande salto na vida.
Depois de ter viajado pelo mundo, em concertos mil: Portugal, França, Holanda, Brasil, EUA, África, com grupos musicais, grupos de dança e de teatro, que demonstram claramente a sua faceta de artista multifacetado, voltou a Cabo Verde, várias vezes, para compartilhar com o seu povo a sua veia e verve artísticas e a sua glória.
Orlando Pantera regressou a Cabo Verde, primeiro, com a companhia de Dança de Clara Andermmat para apresentar Uma história da dúvida, um projecto de espectáculo interactivo e diversificado que põe em cena bailarinos, músicos e actores.
Estando empenhado na investigação, divulgação e preservação das músicas genuínas de Cabo Verde, ou de raiz caboverdiana, Orlando Pantera pautou as suas actuações sempre por um reportório em que o batuque, a tabanca e o funaná estavam presentes, às vezes em perfeita mistura e harmonia, de forma tipicamente santiaguense, cantando em jeito de Dente d’Oru e de Nha Násia Gomi, ao mesmo tempo que possuía um ritmo universalista e contagiante.
Conhecido em Cabo Verde pela sua participação, com sucesso, no álbum Porton di Nos Ilha d’Os Tubarões, Orlando Pantera produziu música com temas e arranjos de mérito, e o facto é que, na sua curta vida de 33 anos, marcou a sua época e a sua geração, criando e integrando vários grupos musicais e actuando em grandes concertos, em vários países e em várias ilhas de Cabo Verde, logrando, inclusive, algumas homenagens e louvações no Festival da Gamboa e no Festival Sete Sois Sete Luas (1998), onde recebeu uma distinção do então Ministro da Cultura de Cabo Verde.
Pantera entregou-se de forma dinâmica, enérgica e total à música. Dedicou grande parte da sua vida à pesquisa no domínio musical, na medida em que dizia que para se conseguir singrar no mundo da música era preciso muito amor, muita dedicação, muito esforço e humildade.
Teve como objectivo principal, no seu percurso, trabalhar, árdua e perseverantemente o seu talento e as suas criações, mas também procurar aprender muito e apreender a realidade que o cercava para poder deixar um trabalho bem feito, rico e profícuo, como legado aos seus filhos e netos. Queria deixar à geração vindoura um trabalho de interesse, forte, estruturado e rico, bem pensado e elaborado que pudesse despertar o interesse de todos, principalmente dos jovens que poderiam tê-lo como objecto de estudo para um voo mais alto, mais rico, mais profundo ainda.
Era importante para ele deixar um trabalho que despertasse a curiosidade de todos e que fosse também um marco na história da música caboverdiana, sem paralelo. E isso ele conseguiu, sem dúvida alguma. Ele trabalhava as suas composições de acordo com o seu estado de espírito. Tanto podia começar pela melodia, que lhe surgia de repente no espírito, como pela letra que se impunha na mente. Às vezes, sentia-se a viajar, longe da realidade que o cercava, para muito longe mesmo, para ir buscar algo que, às vezes, se traduzia em coisas malucas ou maravilhosas.
E são dessas viagens que ele fazia por lugares estranhos e enigmáticos, que ele extraía a sua melodia e conseguia fazer coisas novas, inéditas, nunca ouvidas antes. Isso acontecia consoante o sentimento que lhe atravessava a alma e que lhe determinava um determinado tipo de composição.
Para ele, era muito importante o casamento perfeito entre a letra e a melodia. Achava que era determinante uma harmonização entre a letra e a melodia para se conseguir impor-se ao público e se atingir o alvo pretendido – os jovens, as crianças, ou os velhos. E era fundamental fazer algo simples, mas imponente, que pudesse cativar qualquer um, e se impusesse naturalmente para ser melodia corrente na boca de todos.
De facto, a maioria das suas composições retratava o quotidiano da população caboverdiana, a injustiça social, mas também o amor (lembremo-nos de “Na Bu Regasu”) e a saudade, que são temas típicos do universo musical dos compositores caboverdianos.
Não há dúvidas de que Pantera deu um grande contributo à música caboverdiana através da criação de um estilo próprio, a partir da raiz, da matriz da música tradicional caboverdiana, que investigou com afinco, para estilizar em melodias e roupagens novas, sem deixar perder a base original, genuína, tipicamente caboverdiana. Isto, principalmente com as modalidades da Tabanka, do Funaná e do Batuku, que pôs na moda e no reportório dos músicos caboverdianos em geral. Aliás, foi sempre essa a sua intenção, o seu objectivo: estudar e trabalhar a música caboverdiana, juntamente com outros músicos e parceiros, para fazê-la evoluir e projectá-la, com muito impacto, tanto a nível nacional, como internacional.
No seu percurso, conta uma variedade de arranjos musicais que passam por quase todos os géneros de música que têm chegado a Cabo Verde. Ele experimentou de tudo para ver o resultado, fazendo arranjos com uma diversidade de melodias e ritmos sobre a base musical caboverdiana, que procurou preservar sempre para não deturpar o que é genuinamente cabo-verdiano. A sua intenção foi sempre enriquecer a música caboverdiana, tornando-a mais rica e fluida com a inserção de melodias de outras músicas, como o Zouk, por exemplo, que o ajudou no início do seu percurso e que, quanto a ele, possibilitou uma grande abertura e enriquecimento da música caboverdiana, inclusive, no surgimento de novos compositores e músicos.
Uma das grandes preocupações de Pantera foi sempre deixar algo importante aos jovens, um trabalho, uma mensagem, um conselho, uma orientação. Ele teve sempre como preocupação levá-los a entender que, para conseguirem algo na vida, para conseguirem ter êxito na vida, é preciso trabalhar com seriedade e dedicação de forma a provarem que são capazes e merecedores, antes de fazerem qualquer exigência, que foi o que ele fez.
Pantera começou a sua carreira musical propriamente dita, com a fundação de um grupo musical em Assomada, denominado “Rakodja”, que traduzia exactamente o seu objectivo, enquanto forma de estar na música, que era “investigar, recolher, tratar e acariciar o manancial da cultura musical tradicional da ilha de Santiago”, principalmente o batuku, a tabanka e o funaná, com vista a um trabalho de estilização das mesmas, com uma nova linguagem e roupagem.
Queria levar as pessoas a entender e apreciar devidamente o batuku, que durante muito tempo fora desprezado e repudiado, e considerado incivilizado, visto que, quanto a ele, essa música possuía margem para um tratamento diferenciado.
Queria realçar acordes pouco habituais na música cabo-verdiana, com uma linha melódica diferente, mas que mantivesse a forma peculiar de atitude do homem do campo. Queria dar um certo realce ao homem do campo e valorizá-lo devidamente.
Tinha também como objecto desta pesquisa a história e a evolução da sociedade cabo-verdiana ao longo do tempo.
O humor e uma certa chamada de atenção para casos flagrantes da vida real e da sociedade constituíam ainda a base das suas composições, como desafio ao status
estabelecido, de não revelar certas coisas consideradas tabus.
Dizia que a sua música possuía influência de músicas variadas, de todas as latitudes, para não correr o risco de ser influenciado por uma música apenas, o que não serviria bem ao seu propósito de fazer uma música nova, com estilo próprio, mantendo a sua raiz genuína.
Reconheceu sempre que andou com a influência da música clássica, do JAAZ, e da música flamenga para poder fazer algo diferente e inédito, tendo começado por ter a música brasileira como objecto de estudo para fazer o seu trabalho, mas sempre com o devido respeito pela questão autoral, não utilizando jamais parte ou influência directa das músicas que ouvia, para não reproduzir o que já tinha sido feito.
Pautou o seu trabalho na confluência e harmonização dos trabalhos tradicionais, das grandes composições e dos grandes compositores caboverdianos, que teve como modelo maior, utilizando também grandes melodias universais de forma a criar uma música de raiz autóctone com dimensões universais, que pudesse levar qualquer um a querer ouvi-la e apreciá-la devidamente, quando executada.
Ele queria fazer uma música que representasse um virar de mentalidade das pessoas sobre a música, e, principalmente, que fizesse as pessoas sentarem-se para tentarem entender e apreciar o que ouviam. E queria fazer, essencialmente, música caboverdiana, de forma livre e inédita, explorando, inclusive, as linhas melódicas de “S. João” e de outros ritmos de festejos populares para consagrar na sua música.
O seu sonho era conseguir criar uma escola de música que pudesse responder aos anseios dos jovens e levá-los a saber interpretar as pautas, os acordes e as linhas melódicas para que a música caboverdiana pudesse evoluir.
Para ele, era importante o convívio com outros músicos, principalmente com os de qualidade, para poder crescer, desatacando que, quanto a ele, para que uma música fosse de qualidade, devia ter o poder de contagiar aqueles que a ouviam, para que ficassem num estado de encantamento, o que só era possível com uma música que tocasse as almas das pessoas.
Ele achava que era preciso pensar a música a longo prazo para se poder erigir uma música que permaneça e seja eterna. Tinha de ser algo com muita vida, que tenha encanto, pelo que era preciso dar importância à melodia, que tem de ser algo cativante, capaz de manter as pessoas presas durante muito tempo, porquanto seria algo inesgotável, que não seria apreendido de uma só vez.
A sua forma de trabalhar e de fazer música foi sempre compartilhada, dando e recebendo ideias de todos para a melhoria das composições e arranjos.
A confiança e a segurança foram sempre os seus aliados e a chave para se sentir à vontade, assumindo com seriedade tudo o que fazia.
Ele quis sempre fazer uma música diferente que quebrasse a rotina de ouvir sempre as mesmas coisas todos os dias.
Na verdade, Orlando Pantera foi um astro, um cometa e um mito no universo musical caboverdiano.
Começou de forma magistral a sua carreira, com orquestrações especiais para o grupo Os Tubarões e seguiu em frente, pleno de luz e de palpitações criativas, impregnadas de melodia e ritmos cativantes. Ele encarnava, de forma especial, o espírito da música e da própria poesia, que nele era algo natural, por estar tão ligado à tradição da população santiguense, que, diga-se, de passagem, é altamente metafórica no seu falar.
Pode-se dizer, afirmar mesmo, que ele foi um dos pioneiros em plasmar na música, de forma revolucionária, toda a mundividência e forma de estar e pensar da população caboverdiana, a partir da investigação do modus vivendi da população santiaguense, por ter conseguido aliar nas suas composições o genuinamente tradicional com o universal ao fazer a fusão de ritmos e músicas tradicionais com melodias e acordes de outras latitudes e universos musicais.
Foi um dos precursores do novo estilo caboverdiano, que agora está em voga, com o batuku na moda, na linha de frente de todas as grandes obras discográficas caboverdianas.
Com a sua sensibilidade fina, à flor da pele, ele orquestrou trabalhos maravilhosos sobre a cultura e a idiossincrasia do povo caboverdiano, trazendo factos históricos e acontecimentos importantes da historiografia caboverdiana para a ribalta, para o grande público, com um estilo muito próprio e genuíno, recuperando as raízes da tradição cultural genuinamente caboverdiana, com temas de cariz satírico, dramático, humorístico, lírico e até erótico.
Com uma grande versatilidade no manejo de vários instrumentos musicais, ele conseguiu compor músicas extraordinárias que revolucionaram a forma de estar e de encarar a música caboverdiana, demonstrando ser um potencial virtuoso de criações musicais.
Realmente, ele conseguiu fazer músicas originais a partir das músicas tradicionais caboverdianas, com influências, mas sem cair na alienação de emprestar totalmente música alheia para fazê-la sua, sendo sempre, sem dúvida alguma, um artista criativo e autêntico.
Cantava de forma especial, como só ele mesmo, com brio, com mímica, com dramatização, com espontaneidade e com toda a alma e ser, variando os acordes e os tons consoante os temas e as letras que se acasalam de forma perfeita com a melodia dos arranjos. Tinha uma forma peculiar de interpretar qualquer música, o que encantava qualquer um.
Ele era simples e complexo ao mesmo tempo, como se tivesse duas personalidades: a de um simples e simpático amigo de folguedo, tertúlias e boémia, do dia a dia; e a de um potentado no palco, onde reinava como se fosse um transformer, ou se estivesse possesso, e quase que como um animal…
Se ele tivesse tido chance, seria, para Cabo Verde, praticamente, o que foi Bob Marley para Jamaica, mas foi sem dúvida alguma, em termos de revolução musical o nosso Jim Brown, Big Walter ou Chuck Berry, e o curioso é que ele conseguiu misturar ritmos e melodias tão diversos como o Jazz, o Flamengo, o Samba, o Merengue e outros, de uma forma tão especial e tão performativa, e com uma performance tal na interpretação que se diria, quem o escutasse, que estava perante uma música totalmente nova, inédita, sem referências palpáveis, ou pelo menos identificáveis.
As suas letras eram bem elaboradas e conseguidas, em termos poéticos e narrativos, assim como as suas composições musicais.
À semelhança dos grupos Cordas do Sol e Tabanka Rasa, Orlando Pantera demonstrou que, com um pouco de conhecimento de música, é possível recuperar as nossas raízes musicais e torná-las em verdadeiros sucessos de arte e consumo, e que não precisamos de adoptar músicas alheias. DS
Foto: Jorge Gonçalves, Djinho Barbosa