Uma pintura de múltipla paixão ou de Enigmática Viagem
“Quando pinto, lanço a alma por dentro de mim” E.R.
Para falar dos quadros de Nela Barbosa, teremos de falar, em primeiro lugar, do seu primeiro quadro que constitui como que a sua primeira vez e que, como toda a primeira
vez, é marcante, é perene, é inolvidável.
Esse primeiro quadro de Nela Barbosa, segundo entendi, representa o seu primeiro amor, o amor à primeira vista, o baptismo de fogo no mundo da arte, o primeiro passo rumo à eternidade.
É o primeiro quadro, o momento iniciático, o alfa da descoberta, da busca, da partida para o infinito, e da liberdade de pintar; da liberdade do ofício de pintar, que é o mesmo
que dizer da felicidade de existir.
Será o primeiro olhar, a grande paixão, o ponto de partida para tudo o resto: para a multiplicidade das cores e das criações; para a sucessão dos anseios e desejos, dos sentimentos e entrega. E é preciso falar aqui do seu primeiro quadro: Liberdade, que foi Independência no Feminino, como homenagem à mulher criadora, à mulher emancipada e independente, à mulher artista e à mulher madura para o estro e a estesia,
que se confunde com a própria autora.
Falar desse quadro é o mesmo que falar do início dessa caminhada inefável e incomensurável
pelo maravilhoso e misterioso universo de cores e de luz, onde a realidade e a fantasia se fundem como seivas da mesma flor.
Aliás é a própria autora que diz: “ esse quadro, Liberdade, é uma parte de mim que está presente em todos os meus melhores momentos”.
Falar dos quadros ou da pintura de Nela Barbosa é falar de uma confabulação e vocação
à arte e à criação, num espaço-tempo de paixão e razão, onde a convicção, a entrega e o labor se corporizam num fulgor de enunciação e devir.
Através dos quadros de Nela Barbosa, que podem demonstrar que a essência da pintura
reside nas cores, podemos aportar a um mundo de sentimentos e sensações que nos transportam a uma infinidade de pensamentos e reflexões, de forma espontânea e natural, sobre o nosso quotidiano e o mundo palpitante que nos rodeia.
A orquestração “tímbrica” da sua paleta de cores, conjugada com o seu amor ao universo antropomórfico
e humanístico que nos envolve, dá-nos a dimensão clara do mundo que ansiamos habitar, das necessidades que nos afligem, e dos sonhos que nos transvazam a alma.
Ao percorrermos essa galeria de quadros de Nela Barbosa, temos a
sensação de estarmos perante algo original e maravilhoso, que nos seduz e nos concita à meditação
e à invocação da luz, da paz e da serenidade.
A energia invisível desse mundo recriado e a magia das cores magistralmente buriladas subjugam-
nos, pela forma especial como se comunicam connosco, como se manifestam no nosso inconsciente, invadindo-nos os olhos e o coração de ouro e de sol, alertando-nos para uma outra dimensão da vida.
Quando contemplamos esses quadros, apreendemos facilmente o sentido profundo das coisas, ainda que estejam transfiguradas ou travestidas, e há, nesse instante de encontro entre o olhar e o ver, a consciência da transcendência da vida, que muitas vezes vivemos como meros momentos,
transitórios, de prazer.
E há então a consciência da necessidade, íntima, de conhecermos e desfrutarmos, com mais propriedade, as dádivas da vida.
E não há dúvida que esses quadros de Nela Barbosa são dádivas da vida à nossa vida, pois são quadros laborados com amor, com paixão, com espiritualidade, de forma a criar uma realidade vivida em homenagem à arte de viver vivendo.
E se quisermos explorar um pouco o mundo das significações, dos significantes e metafísica desses quadros, é preciso termos em conta a complexidade de que se reveste a contemplação, e compreensão da obra de arte, devido, por um lado, à cadeia de interrelacionamento dos vários componentes de um quadro, que pode ser diversa, consoante a sensibilidade e vivência do espectador,
e até do momento de contemplação e, por outro lado, à própria dinâmica subjacente à interpretação da obra de arte que nos remete para a possibilidade de uma multiplicidade de leitura.
Assim sendo, o que se pode dizer de Nela Barbosa e da sua pintura é que ela possui uma nova forma de abordar o impressionismo, utilizando fotografias da sua própria lavra para compor os seus quadros que acabam por ter um cunho e uma aparência completamente diversos do objecto-ponto-de-partida, devido à maneira como manipula o espaço, as cores, os planos e os contornos decorativos, de forma plasticizante, criando uma realidade outra, às vezes fluída, às vezes palpável, de atmosfera lírica e exótica, entre o figurativo e o abstracto, embora algumas vezes de matiz marcadamente realista.
Tendo a realidade e a natureza caboverdianas como pontos de partida para a elaboração da sua obra, Nela Barbosa consegue imprimir uma dinâmica cromática aos seus quadros, plasticizando
as cores em manchas grumosas e planas; em pontos espessos e superfícies lisas e líquidas,
ao mesmo tempo que cinzela e modela nuances de luz, que transverberam e conferem aos seus cenários e paisagens uma atmosfera de altos e baixos-relevos; de luminosidade e sombra, mas também de jogos de distorção e de transfigurações de imagens, que ora são nítidas, ora esbatidas e indefinidas, ou quase abstractas.
Uma menção particular merece a sua paleta de cores, pouco usual, que se individualiza muito, constituindo como que uma marca própria, principalmente na forma como conjuga os tons de cores quentes e frias, as nuances de luz e os espaços de fundo, que nos encanta e fascina pelas surpresas que causam ao captarmos as sugestões contidas nas imagens referenciais, ou nas aparentes abstracções cromáticas que propõe, que atestam talento e técnica amadurecidos.
Navegando entre a orografia das ilhas, os quotidianos dos islenhos e as simbologias culturais de Cabo Verde, os quadros de Nela Barbosa referem-se, sem dúvida alguma, ao universo sócio-cultural caboverdiano, às “Costelas da Caboverdianidade das Ilhas”.
Alargando um pouco esse aportar analítico a uma visão sensitiva e dialéctica, numa variação de abordagem e linguagem, diremos que:
Com um certo predomínio de uma linguagem de cores, a pintura de Nela Barbosa discorre entre o informalismo, ou tachismo, com a utilização de materiais diversos que imprimem aos seus quadros uma dinâmica perceptiva, pelo movimento que a alternância entre o baixo e alto relevos, em sintonia com os jogos de cores, de nuances e alternâncias, despoletam à visão; mas também na utilização da técnica, algumas vezes, do primitivismo e do naíve, com os figurativos de linhas e traços, sem volume nem perspectivas, sobre um fundo cromático.
As cores e as formas parecem surgir, repentinamente, como se tivessem materializado do nada, de inesperadas veredas, imperceptíveis, de sob o manto das construções que orquestra.
Muitas das pinturas de Nela Barbosa assemelham-se a incursões e excursões, de enigmáticas viagens, por paisagens exóticas e fantásticas, ora de frondosos bosques de cores, ora de frondosas achadas de erosão, arenosas, basálticas ou simplesmente vazias, em que só há a ressonância
de uma única cor em reverberações prismáticas.
Carregada de electrizante paixão, pelo vigor das pinceladas e das construções cromáticas e tachistas, os quadros de Nela são como que relâmpagos e trovoadas em permanente diálogo entre o céu e a terra, donde não faltam chuvas, enxurradas, avalanches e intempéries. Mas, encontramos também a bonança e a esplendorosa beleza do resplandecer do sol: sobre o tempo, sobre a alma e a vida, em cânticos de amor, plenos de riso, de espiritualidade e da louca e desenfreada vontade de viver, isto é, da entrega apaixonada à vida.
Com matizes diversas, desde o sombreado, passando pelo baço e indefinível, até ao resplandecente, as pinturas de Nela Barbosa intumescem-se de subtis mensagens e comunicações, mesmo em se tratando dos mais abstractos dos seus quadros.
Jovem de muito talento, Nela Barbosa tem, sobretudo, uma pintura própria de criação e safra individual, em que revela um interior rico, apaixonado e já de uma certa maturidade estética e imagética, não obstante algumas influências aqui e ali.
Ela utiliza uma técnica um pouco à semelhança dos impressionistas no seu processo de criação em que pinta a partir de retratos e figuras seleccionadas, mas imprimindo sempre a sua criação, recriação, e a sua perspectiva das coisas.
Mas, o que lhe interessa muito, ainda, é retratar a cultura cabo-verdiana: hábitos, costumes e também paisagem, pelo que procura sempre momentos e coisas especiais da mundividência da população que transpõe para os seus quadros, mas sempre numa perspectiva e visão própria.