A Cabeça Calva de Deus
Uma Poética Cosmovisão de Cabo Verde
Danny Spínola
I. Introdução
Vou falar, aqui, do livro A Cabeça Calva de Deus, de Corsino Fortes, dando, no entanto, especial enfoque ao livro Árvore & Tambor, que dele faz parte, que foi publicado em 1986.
O livro A Cabeça Calva de Deus, de Corsino Fortes, é o título genérico da trilogia: Pão & Fonema, publicada em 1980 (2ª edição), Árvore & Tambor, publicada em 1986, e Pedras de Sol & Substância, publicada em 2001, em simultâneo com os outros dois títulos.
É preciso dizer, antes de mais, que qualquer desses títulos é bastante sugestivo, constituindo todos eles um símbolo representativo de uma mensagem codificada. Isto é, constituindo, todos eles, imagens que requerem um certo exercício de abstracção ou de descodificação para se poder apreender os seus sentidos. São, sem dúvida nenhuma, signos tríplice de um desígnio e sentido único, de uma unidade absoluta, indissolúvel.
Começando pelo título, A Cabeça Calva de Deus reúne um conjunto de elementos sígnicos que nos aponta numa determinada direcção.
Fazendo uma dissecação desse conjunto de termos, teremos, como resultado, a conclusão de que esse título se refere a Cabo Verde; e, mais ainda, que está a falar de um Cabo Verde seco e árido, secular, mas auto-sustentado, por ser, ele próprio, a síntese da tríade, que retrata o autor da sua existência, o deus já arcano.
A Cabeça Calva de Deus emerge, aos meus olhos, como uma obra singular no conjunto de cânticos telúricos dos nossos vates, com uma incursão profunda nas entranhas dos sentimentos e essências do Homem Cabo-verdiano, e o seu dilaceramento interior.
É uma escrita coalhada de vitrais de seca e de labuta, de projecções de miséria e de eruptivas interrogações, eivadas de revolta, com imagens labiais e polifónicas, esbeltamente aliterantes, inundadas de sol e secura, de lava e luta.
Toda a obra, com a sua santíssima trindade, é um avatar do discurso épico, pelo tema e herói, coincidentes, afectados, todos eles, pelo síndroma bíblico, com o seu hipnotismo de melopeia eclesiástica.
Em termos temáticos, temos o corolário de uma radiografia sócio-económica e existencial, com pertinentes retratos da vida e vivência cabo-verdiana: a eucaristia, a seca, a fome, a luta pela sobrevivência.
Do mesmo passo, ainda é visível a geográfica geometria da angústia, do desânimo, sempre imolados pela esperança e pelo estoicismo, assim como a luxúria do cio e das tabernas bêbadas; a seca, o deserto, o porto, o exílio, a diáspora e a sobrevivência.
Os Poemas de Corsino Fortes estão polarizados num campo perimétrico em que o homem e a sua existência estão circunscritos, ainda que num círculo espirálico, pela necessidade de viver em estreita dependência e comunhão com a natureza, da qual depende, e com a força da existência individual que o consubstancia e o faz viver, sem se render, ou sucumbir-se, perante o seu signo de fatalidade ou do desígnio.
II. A Cosmogonia Estilística em A CABEÇA CALVA DE DEUS
Analisar, ainda que superficialmente, a obra A Cabeça Calva de Deus, de Corsino Fortes, é uma tarefa cativante e motivadora, por duas razões:
1º – porque se é tocado, profundamente, quer se queira quer não, por uma beleza artística e plástica do dizer, bastante original;
2º – pelo desafio que nos propõe, ao interpretá-la. Parece-me que a forma de escrever (que condensa) aproxima-se bastante da ideologia marxista, que propõe a leitura do texto como produção e não como produto, de forma a promover a reflexão no leitor. Repare-se, por exemplo, na reflexão que exigirá aferir que ele quer dizer que o povo se consciencializou, que não deve esperar obsessivamente pela chuva e pela sobrevivência, antes, sim, procurar os seus próprios meios de subsistência, através do poema:
“Que hoje! o Povo /chove no povoado a sua chuva de séculos /e a goela das ribeiras /incha-se de aplausos /Que a chuva /é /Podium /na maratona das nossas artérias”
Uma das formas de leitura que me parece mais conseguida para essa trilogia, A Cabeça Calva de Deus, é a leitura sintagmática, na medida em que a obra é toda ela reiterativa e funciona em círculos espiralados, indo e voltando sempre ao tema principal – os elementos do texto têm relações intrínsecas, de conexões e alargamentos expressivos bastante sólidos:
1 – “Mar & Monção mar & matrimónio/Pão pedra palmo de terra/ Pão & património (P&F)
2 – “Ó tambores de Barlavento /Ó tambor/Tambores de Sotavento” (A&T)
3 – “Ó pirâmide de vigília/ Filha! Mãe! Irmã gémea da ilha” (PS&S)
É de se reparar nas palavras e conceitos circulares que perpassam todos os textos – rosto, ovo, sol, moeda, gema, rodas, hélices, tambor, arco-íris, ilha, mundo, redondo: paranóia do concêntrico.
Ana Mafalda Leite diz que: “‘o poema’ apresenta-se como engendrador de uma importante simbologia de formas redondas, onde a circularidade do universo que se constrói, ao tomar a sua dinâmica própria, ganha a forma esférica de um ‘cosmo’”.
A obra quase que se circunscreve a um universo semântico limitado.
Entretanto, é de se realçar que as palavras repetidas ao longo dos poemas (existem muitas) ganham sempre conotações diferentes, não só pelos contextos em que se inserem, mas também pela expressão que veiculam. A maleabilidade que as palavras ganham, adquirindo sempre novas feições, é deveras extraordinária.
Corsino Fortes manipula não apenas a fruição semântica dos poemas, mas também a própria rede de relações das palavras que assumem proporções transfrásicas excepcionais.
“Ó cabra de sono ó poço de abandono/ Ó crepe da terra ó cratera/ de cabelo crespo (…)Arranco arrancas/ Os apóstolos do céu-da-boca…(P&F)”
“ Mas no olho vítreo da gota /uma cabra dança E outra coxeia /Ambas arrastam Entre as patas /um eclipse de sol /No rosto oblongo da gota /As ilhas são cabras /as cabras são ilhas /Com úberes na via láctea” (A&T)
Os conceitos circulares atingem a dimensão do cosmos através de espirais reiterativas. A forma circular é a mais perfeita de todas, pois todo o movimento possui como base ou força motora a esfericidade.
É de se relevar que tudo aponta para o devir: tudo é fértil e produtivo – o sol fecunda; a gema incuba; a roda e a hélice imprimem movimento, a ilha adquire assim as proporções do cosmos em toda a sua magnitude – a ilha transcende-se a si mesma:
“E de pé! O arquipélago ganha vela /Porto & Terra /De árvores com hélices nas raízes”(A&T)
O estilo corsiniano é original (relativamente aos arquétipos cabo-verdianos), tanto no aspecto formal (utiliza muitas exclamações, letras maiúsculas no meio das frases e disposições estróficas inesperadas):
“Estavas estás/ sem no/ na/ nos/ nas/ assim nua (…) AGRANDE A GRANDE/ B GRANDE/ e/ b pequeno (P&F)
“Alma! no espelho da várzea /Há gotas que se festejam /E s’enlacem /entre a morna E o violão dos dias /Há cópula” (A&T)
como no aspecto artístico, ou seja, a nível da plasticidade de escrita: os seus poemas são quase todos eivados de alegorias e hipérboles próximas do mito.
“Chove pulga & ponto: sangue & vírgula /Na tábua da cabana que olha /o céu da tarimba Que dorme /E chove na soleira da porta /sobre o velho rosto que floresce! como /A chuva que fala & canta /numa caneca de folha”(A&T)
Seria um estilo típico da anamorfose em que os extremos se tocam, se associam.
1 – “Por vezes! o vulcão é o ovo Em cada rosto /E as ilhas eclodem /E as ilhas chovem da casca do homem (A&T)
2 – ó estrelas Que se rasgam /Na palma da mão dos homens
3 – Árvore & Tambor numa viola madura /ou /Violão & viola que une /As mãos e os pés que gotejam /Pelo arquipélago dos dedos /o travão & relâmpago de Santa Bárbara”(A&T)
A aliteração de forma e conteúdo também é uma constante:
“Galinha vai galinhas vão/ pedra sobre pedra/ E executam/ Por terraços de pozolana/ o«p» «q»/ «p» «q» «p»/ Da coreografia dos galos.(P&F)
“E chove do “r” “s” da erosão /que devolve /O milho ao marulho e o mar ao milheiral /E aviva /Entre duas costelas /o vale /Da Pedra Rubra e Rumurosa /da ribeira que rompe”(A&T)
É de realçar a sua propensão para o uso de sinédoques e de vocativos de invocação:
1 – “E de pé! O Arquipélago ganha vela /Porto & Terra /De árvores com hélices nas raízes”
2 – “Oh! lençol amargo da África viva /Que o rosto de Conacry não seja /o corpo e o espírito /Do mesmo coágulo de sangue”
Já dizia a prefaciadora que “a poesia” de Corsino Fortes se encontra em dois níveis de apelo. Um que consiste em “nomear”, o outro em dizer, e que este último manifesta uma trajectória complementar de acção perante o verbo. Ao mesmo tempo que o “cosmos” vai sendo “nomeado”, construído, vai sendo também dito, evocativamente, através da invocação e exclamação.
A propensão para jogos poéticos e relações metafóricas de equivalência das palavras nos textos é flagrante,
“Ó dívida redonda /sobre a moeda do mundo /ó dívida do mundo /sobre a moeda do rosto”(A&T)
“Ó corpulência & sonho/ Surdo? Mudo?/ Na tua nudez de mutante/Ó bíblia de murmúrio/ na tua semântica/ De sal! Sangue & paradoxo (PS&S)
assim como a facilidade com que usa versos e poemas em crioulo intercalados com o português, à semelhança do ideário claridoso:
1 – “E saem à rua naquel bloque /Tá levanta broce /Naquel dsuspere & graça /de soletrá liberdad”(A&T)
Parece-me que a poesia de Corsino Fortes se inscreve num conjunto de poemas que se propõem a uma diversidade de leitura. Na verdade, sendo o conteúdo dos poemas corsinianos essencialmente de intervenção, é de aquiescer que tenha uma linguagem e uma expressão poética inovadora, não panfletária, ao invés do usual em poemas de intervenção social (na generalidade):
“Ó sol & soldado de pão /Sem pão & caldeira E a multidão por amar /Sem ovação & Podium E o peso olímpico por erguer.”(A&T)
“Se/ a erosão é fogo no motor da evasão/ A morna! O finaçom nos conduz/ ao frigorífico da cultura/ das terras do fim do mundo/ À guerra da pobreza/ No metrónomo do batuque/ E ao dente de ouro da tabanca/ No mênstruo das salinas(PS&S)
De facto, a poética de Corsino Fortes é intencionalmente construída para produzir a ambiguidade (multiplicidade de leitura), o que lhe confere um alto nível literário (poético e artístico):
“De manhã! o pilão povoa o templo das nossas /Têmporas /E os tambores amam a chama da palavra mão”(A&T)
O tom barroco está marcadamente presente na sua escrita, a qual busca não só um misticismo estético-ideológico expressivo, mas ainda uma arte formal imbuída de um espírito novo que procura o construtivismo através de símbolos audazes.
É o que a arte poética moderna utiliza, e que é designada por imagismo:
“ó como chove! meu amor /Chove! na sombra /dos gafanhotos sobre o crânio de Deus /Chove! do nó da gravata /dos dignatários de Sahel /E nas patas traseiras /das alimárias que resistem”(A&T)
De uma riqueza imagética fabulosa, que se impõe em todas as vertentes da sua poe
sia, isto é, nas três obras poéticas, já publicadas em três momentos diferentes, os signos que ele utiliza são ícones de uma densidade de significantes em estreita harmonia com a dos significados, embora, às vezes, com um distanciamento substantivo relativamente aos seus referentes, tornando os textos fechados, quase herméticos, de difícil penetração e compreensão. Joga com a figura da ocultação e da revelação na linha de uma entropia discursiva. Às vezes, inclusive, com um jogo associativo de imagens seguidas de disjunções-hipálage ou de elementos sem nexos, não encaixantes nas sequências discursivas-reflexivas, algumas vezes paradoxais, que causam uma inconsequência, e, consequentemente, uma certa surpresa. Os poemas baseiam-se em imagens e metáforas sem termos de ligação, as quais representam o próprio ser a que se querem referir. A personificação constante das coisas, de tudo e do todo, confere- lhe uma dimensão “trans-espacial”, “trans-cultural” e “trans-social”. Há ressonâncias antropomórficas, como se o próprio Homem fosse ele próprio o todo — o ser social e a sociedade, indissociados um do outro; o fim e o começo; o centro e a periferia; a fonte e a sede.
“ Na lama/ No chão de Lisboa/ O Inverno dos meus pés/ Tem cinco dedos afogados (…) Desde ontem/ O navio é paisagem de alma sem retina/ E teu nome sobre o mar/ sol + árvore de boca sumarenta”.( P&F)
“ Palato galopam/ Trazendo/ a/ e/ i/ o/ u/ nas suas vagens/ tantas árvores/ que pendem/ Do céu-da-boca à boca da comarca/ Que/ falso é o peso/ Falsa é a medida (…)” (P&F)
E essa impressão ou sugestão adensa-se e solidifica-se com a metaforização sinestésica que se lhe ajunta, em fusão de acções e intenções, de casos e de coisas, de ansiedades e necessidades. É o homo-viator que viaja pelo interior da vida ou da essência das vivências, pois que a relação do seu fazer poético tem muito a ver com a interioridade, isto é, a realidade e o mundo são retractados mais em função, ou na óptica, dos efeitos que causam na alma do que propriamente pela descrição dos seus aspectos exteriores. Daí essas danças mutagénicas do dizer entre o ser e o sentir, a personificação e a sinestesia. Daí ainda um certo misticismo surrealista.
“Que o pilão viaja com pés de Portinari/ Ultrapassando o abcesso/ Das ribeiras em viagem/ Com hélices de pedra/ Ao redor da pedra/ E teias de aranha no poente da boca”. ( P&F)
Outras características pertinentes da estética corsiniana é a abundância de interrogações, não no sentido, a maioria das vezes, de querer saber, mas sim de querer afirmar, com afirmações tipo litotes, a par de inúmeros epifonemas de tom incisivo e decisivo que sentencia e dita máximas e silogismos.
“Sabias? Amor/ Que o «lh» de ilha a ilha/ É mar & tornozelo de pernas longas sobre o mundo (…) Mas onde/ onde mora? A mão/ E a viola do artesão/ No violão do teu corpo/ habita// a minha boca lunar (…)” (A&T)
Finalmente convém dizer aqui que os poemas de Corsino Fortes estão, em termos arquitecturais e visuais, e mesmo estruturais, na linha da poética poudiniana, com as suas maiúsculas no meio das frases, as suas escadarias e cortes de palavras, mais as suas aliterantes aliterações.
Toda essa diversidade de técnicas utilizadas indica que o autor está consciente do seu fazer, e que quis erigir uma poesia própria, desvinculada (pelo menos no aspecto estilístico) das restantes. O esotérico desta poesia, em toda a sua extensão, faz com que ganhe foros de inusitado exotismo sem referências prontas (salvo algumas excepções).
“Há quem diga /Que o peito da mulher é a pedra mais dura /Que Deus pôs sobre a terra dos homens /Que terra? Que homens? Mas /Um pouco de céu E de azul dirá /Que nos seios dela /A via láctea bebe o sol da força plena” (A&T).
III. Pão & Fonema
Alargando, então, essa leitura sobre a aridez secular de Cabo Verde (referida em A Cabeça Calva de Deus), ao título da primeira trindade, temos a confirmação desse pressuposto, com o Pão, que implica sustento, para, de seguida, constatarmos que há a proposta aqui, através do deíctico Fonema, do início de uma comunicação,
E, realmente, é disso que se trata. O livro Pão & Fonema propõe falar da questão do sustento, da sustentabilidade, em Cabo Verde. É a locução, ou o discurso sobre a sobrevivência em Cabo Verde, seco e árido.
Se A Cabeça Calva de Deus se refere a Cabo Verde, através de uma imagem metonímica, Pão & Fonema refere-se, metaforicamente, ao começo de uma anunciação à volta da essência da vida, que é o alimento nosso de cada dia.
Enquanto poema de incidência épica, como as outras duas trindades, Pão & Fonema está dividido em três cantos, com uma proposição, que contém o mote, ou epígrafe, dos três cantos, a abrir a obra, resumindo, por conseguinte, o conteúdo desenvolvido nos cantos seguintes.
Após uma leitura atenta dessa proposição, poderemos tirar a ilação de que a primeira estrofe é a síntese da tese do primeiro canto: Tchon de Pove Tchon de Pedra, sendo as duas estrofes seguintes as sínteses das teses dos outros dois cantos: Mar & Matrimónio e Pão & Património. A proposição propõe, então, que se fale do arquipélago desértico, feito de pedras e de terra árida, vazia, açoitada pela intempérie solar, e da busca secular dos filhos das ilhas do seu sustento. A proposta é a de se desenvolver um discurso sobre a luta gritante, dura e árdua, das pessoas contra o não-cumprimento dos desígnios da terra, que é sustentar os seus filhos. É o discurso sobre a luta pela sobrevivência.
“Ano a ano/ crânio a crânio/ Tambores rompem/ a promessa da terra/ Com pedras/ Devolvendo às bocas/ As suas veias/ De muitos remos.”
Entre imagens, personificações, aliterações e sinestesias, essa proposição desenvolve-se, equacionalmente, numa progressão discursiva da problemática da seca e aridez das ilhas até à catarse da veemência de uma afirmação categórica relativamente ao esforço que se despende, ciclicamente, nessa terra de promessa”, à procura da hóstia da vida, às vezes de forma vã. Há uma reiteração em cada estrofe, desse pressuposto, tornando-se evidência, em cada estrofe, os mesmos versos que nos remetem, por analogia, a modos intertextual, para o universo poético de “Ilha a ilha / Dor a dor”, de Ovídio Martins, ao enunciar “Ano a ano / Crânio a crânio”. O próprio léxico escolhido, como pedras, cabra, olho, ilha, reforçam essa sensação de estarmos perante “As cabras ensinaram-nos a comer pedras para não perecermos”.
Em “Tchon de Pove e Tchon de pedra”, o canto primeiro, que começa com “De boca a barlavento”, encontramos o alargamento desse núcleo, tal uma pedrada no charco, ou um grito que se prolonga em eco, prosseguindo o discurso da sobrevivência, dessa luta pela seiva e sustento da vida, pela beleza e poesia, apesar da situação adversa, castradora, redutora e destruidora que constitui o espaço de muito vento e pouco sustento onde a boca se alimenta praticamente de vento. Existindo, não obstante, no mais profundo do ser mártir das ilhas, espaço para o cântico e felicidade, numa clara recusa à fatalidade.
(…)”Poeta! Todo o poema:/ geometria de sangue & fonema/ Escuto Escuta/ Um pilão fala/ árvores de fruto/ ao meio do dia (…) E lon longe/ Do marulho à viola fria/ Reconheço o bemol/ Da mão doméstica/ Que solfeja.”
Com “Poeta! Todo o poema: geometria de sangue & fonema” se reafirma o espaço da poesia versus a luta pelo sustento, e a exaltação da figura feminina que vai orquestrando o seu afazer com doçura e resignação, onde se reconhece “a mão doméstica que solfeja”. A luta aqui é feminina e masculina, tanto no mar como na terra, dura e agreste, entre “mar & monção e mar matrimónio (…)” e “ Pão & Património”.
Ainda, no canto primeiro, há uma enumeração crescente do estado de espírito do ilhéu perante as adversidades, que se manifesta de forma diversa, com a procura da solução no estrangeiro, o que causa saudade e algumas vezes alienação, tivo ao apelo ao retorno à terra amada, ainda que seja para constatar que a “chuva é um bode macho capado” ou “o poço mais raso das nossas lesões”. Ainda que amando o milho “ao redor do fogo, sem o deglutirmos ao redor da mesa”, nessas ilhas “de 5 pedras soltas”, que resvalam “pela trova de tanta voz/vozes”.
E aqui, neste espaço de discurso sobre a fome, encontramos um intertexto com Jorge Barbosa, num cântico uníssono sobre “os pilões calados fogões apagados”.
Já no canto segundo: Mar & Matrimónio, o discurso centra-se na célebre tese claridosa “querer partir e ter ficar”, “querer ficar e ter que partir”. O enfoque desse canto é a questão da evasão e do evasionismo e da emigração, com toda a carga do poema “Ai, não montes tal cavalinho,/ tal cavalinho vai terra-longe,/ terra-longe tem gente-gentio,/ gente-gentio come gente”.
À descrição da vida e vivência do emigrante, em terra longe e estranha, onde a “alegria da boca é cal e o grito da cara é cimento”, onde se dorme ao relento, com os invernos de paisagens sombrias e lúgubres que causam mal estar ao emigrante desacostumado, advém o apelo ao retorno, não obstante algumas vantagens da vida no estrangeiro, já que o próprio sentimento do cabo-verdiano, longe da sua terra, é de saudade e ânsia de regresso, já “que a sombra do seu corpo é uma cruz/ longe do sol da sua terra”.
O intertexto em “Já vendi kamoca food / nas ruas de New York” com o poema Holanda de Osvaldo Osório é significativo.
A partida aqui é igual à morte e o regresso igual ao renascimento, ao começo de tudo, pois “Toda a partida É potência na morte, e, todo o regresso É infância que soletra”.
E essa conclamação do regresso à origem é veemente e peremptória, na medida em que a tese é de que a ilha, o país todo, espera pelo regresso do seu filho, com a sua potencialidade e fertilidade, antes que procure coisas novas.
“A terra/aspira/o seu falo verde/E antes que seu pé/seja/árvore na colina/ e sua mão/cante/lua nova em seu ventre”.
É que tudo e todos, até o campo e a pastagem, aguardam o regresso do emigrante, que virá contribuir na edificação do país, porque, se toda a partida representa o começo do conhecimento, o regresso é, sem dúvida nenhuma, o conhecimento ganho “Que toda a partida é alfabeto que nasce/e/todo o regresso é nação que soletra”.
No canto terceiro, “Pão & Património”, não obstante a reiteração das mesmas questões da luta pela sobrevivência, encontramos um elemento novo que é a espiritualidade ancestral do cabo-verdiano. Há aqui uma evolução do discurso que vai do
dando mo
material ao espiritual, passando pela cultura e pela universalização da mestiçagem cabo-verdiana.
Com uma estrutura de canção, cheia de repetições e refrães reiterativas, este canto evoca grandes poetas como Ovídio Martins, Jorge Barbosa e Osvaldo Osório para destacar a terra que é mater e pater, que é seiva e substância do povo “Que a terra é carne!/agora e sempre/já a criança nos falava dela/Devorando-a (…) que, a ilha roda no rosto da criança/com a «Vareta presa» na roda do vento”.
Mas, este é um canto também à história das ilhas, à formação do carácter e identidade da sua população, com o seu crioulo, a sua filosofia de vida e maneira de estar perante as adversidades e perante a religião. Aliás, é mister destacar aqui o poema “Quando a manhã amanhecer” com a sua visão particular, tão diferente dos outros poemas, não só em termos do discurso, como da própria estrutura externa e imagética, já mais próxima dos cânones gerais dos poemas ditos universais.
IV. Universo temático em Árvore & Tambor
Como já dito no início, Árvore & Tambor é a segunda publicação da trilogia – Pão & Fonema, Árvore & Tambor, Pedras de Sol & Substância – que retrata a rea-lidade cabo-verdiana.
Segundo Ana Mafalda Leite, “o título Árvore & Tambor retoma, então, a proposta de Pão & Fonema, alargando-a. Do resquecial fonema que reclamava a liberdade de ser palavra e voz, advém o Tambor, som pleno, que, pela sua tradição africana, impõe uma nova linguagem de identidade com África, de ritmo, de festa e de solidariedade”.
Já da união entre a Árvore, simbolizando a exuberância, a vida e a esperança, e o Tambor, simbolizando, por seu lado, o som, a palavra, a comunicação e o chamamento solidário, é possível inteirar-se da intencionalidade do afirmar da nova gesta heróica do Povo a caminho da liberdade plena, assumida, e da capacidade própria de construção, que recrudesce com o assentar dos pés verdadeiramente no chão – plantar, erigir, criar.
Mutatis mutandis, Árvore & Tambor, tanto quanto poema, manifesta-se como cântico à força hercúlea do povo na sua labuta quotidiana, em frentes várias – no campo, no mar, na diáspora –, contra as adversidades para poder sobreviver, contornando as dificuldades; é o apelo à consciencialização para a necessidade da união e do patriotismo de todos para a construção da terra que reclama o esforço dos seus filhos.
O discurso temático corsiniano é, preponderantemente, nacionalista, embora tenha rasgos indeléveis de universalidade.
O longo poema, que é Árvore & Tambor, retrata todo um percurso, o itinerário sócio-histórico das ilhas. Há o revelar de uma saga – a epopeia de um povo mártir.
A “proposição & prólogo” da obra abre com um poemeto, “ilha”, que sintetiza, praticamente, a razão de ser da obra. Esse poemeto que, segundo Ana Mafalda Leite, “desenha formalmente o mapa poético das ilhas de Cabo Verde, através dos nomes utilizados”,
“Sol & semente; Raiz & relâmpago /Tambor de Som /Que floresce /À cabeça calva de Deus”
chama-nos a atenção para os cantos que se seguem, visto que todo o conteúdo da obra se condensa, espiralmente, à volta das dez ilhas que integram Cabo Verde.
A ilha possui o “sol” que fecunda; a “semente” que é gérmen da vida; “raiz e relâmpago”, que é base e força e é a energia que faz florescer o deserto: a “cabeça calva de Deus”, que se tornou irremediavelmente improdutiva.
A ilha – “sol & semente”, e os seus filhos – “raiz & relâmpago”, mais a sua vontade – “Tambor de som” –, tornam-se auto-suficientes.
Em suma, a ilha, finalmente, é portadora de tudo o que é necessário para a fecundação, para a vida. É preciso desmistificar esta crença do povo neste Deus tão antigo e tão ingrato. E essa proposição continua nos dois outros poemas desta introdução.
No poema, “DE BOCA CONCÊNTRICA NA RODA DO SOL”, não só se afirma essa potencialidade, mas também se viabiliza essa realidade, em que a potência se transforma em acto – o povoamento da ilha é uma realidade e a sua independência também.
Depois da tomada de consciência da sua liberdade, o povo decide fabricar com mais afinco o seu auto-sustento:
“Depois da hora E da mensagem do povo no tambor da ilha /Todas as coisas ficaram públicas na boca da República /As rochas gritaram árvores no peito das crianças /O sangue perto das raízes E a seiva não longe do coração”
Aqui, o horizonte semântico da ilha auto-suficiente alarga-se. Há um conjunto de referências à situação de colonização e da revolta do povo, assim como à situação de improdutividade da terra em si, destacando-se a luta titânica do povo na procura da sua sobrevivência, o que leva as ilhas a tornarem-se fecundas pelo empenho dos seus filhos:
“A espingarda que atinge o topo da colina /De cavilha & coronha /Partida partidas Não é um mutilado de guerra /É raiz & esfera no seu tempo & modo /De pouca semente E muita luta”
uma chamada de consciencialização para o facto recente da independência, como da impossibilidade de tudo (a superação da fome, da miséria, e o desenvolvimento do país) se resolver tão de repente:
“Poema! Que o tempo/Não peças milagres/Por favor que ainda ontem/os relógios alargavam a boca dos cemitérios/E o silêncio dobrava o sino dos séculos que tombavam/Que ainda ontem/o silêncio era lei E a fome! parlamento/E o sangue! moeda na boca colónia/E a colónia era pólvora no gatilho/De trezentos e trezentas mil almas”.
poema, “NO ROSTO DOS HOMENS NASCERAM COSTELAS DE SAHEL”, repercute-se ainda a chamada de atenção para a situação catastrófica das ilhas necessidade de se desenvolver uma atitude estóica e perseverante de abertura mundo.
peso do deserto é tanto que leva o povo a ignorá-lo e a manter uma relação comedida com o mundo, contando tão-somente consigo e com o seu esforço:
“que na omoplata do homem/estala o coração de pedra/a ilha ergueu até à boca mundo/a baía austera/E o espírito é árvore E o sangue/O sal da terra”.
Requer-se também uma acção violenta:
“Bole tambor/a pedra da noite E a noite de pedra/com o teu daba/ E acorda o rosto na semente/E sacode a árvore no homem”.
seguir, uma acção fecundante de esperança e de devir, de renovação e de reconstrução e de promissão é reiterada.
“Mas/Naufragada/No sol das manhãs/a moeda do império/ As ilhas Perdendo peso/ganharam/ asas/E o arquipélago/cresceu no ventre de tantas fêmeas/O vulcão perto raízes/E a viola não lon/longe do coração”.
primeiro canto – “DE MANHÃ! OS TAMBORES/AMAM/ A CHAMA DA PALAVRA MÃO” –, o poeta fala da origem do povo das ilhas, da sua inserção no continente africano, da sua luta em comum com os restantes africanos (de igual feição):
“De manhã! as ilhas/De minha pátria nascem grávidas/como o arco-íris/na menina do olho E falam/De afro-pão E afro-guerra, como olho na pólvora do mundo”.
O poeta revela a razão da sobrevivência deste povo, mostra de onde vem a força que recupera a ilha grávida, indicando os passos dados para se conseguir essa força em pleno e marchar firme e decididamente. O poeta fala dos mecanismos a serem utilizados para se ultrapassar essa situação, mostrando a importância da palavra, do estudo, do conhecimento profundo das ilhas, e, fundamentalmente, da liberdade como eixo principal do progresso:
“Que a escola/é olho do mundo que sangra/é flor do sal que ama/como criança! amamos os sons E as sílabas (…) E escorrem rostos/pelo regato dos dedos/com o riso da ilha nas entranhas/E saem à rua naquel bloque/ta levantá broce/cu dsuspere & graça de soletrá liberdad”.
O poeta pede a cada filho da ilha que ame a ilha profundamente e a interiorize, desfrutando-a inteiramente:
“De manhã as rochas tecem/na boca do mar/O rosto do útero da palavra amor/Da casca/De céu & gema! O sol desce/velho e jovem/ajoelha-se à porta das maternidades/Enquanto lava/mãos/ pés E tronco/com a lava dos vulcões/oferece/sangue & seiva letra & música/a cada revolta & tambor/Que nasce”.
É preciso prestar muita atenção à culturização do poema. O poeta quase recria todo o universo sócio-cultural das ilhas, pormenorizando muitos aspectos da vivência cabo-verdiana (a culinária, a música, o espaço físico da ilha e o seu modus vivendi).
E o poeta proclama o auto-sustento e o amor do ilhéu à ilha (que não conclamam com a emigração) como factos consumados. Contrapondo-se à necessidade de partir querendo ficar, há a decisão de não mais partir mundo fora, porque entre o viver na diáspora e a necessidade de reconstrução do país, chamada pela terna voz das ilhas, a opção é clara:
“Jamais o útero da ilha/no olho do mundo/Que do pão da diáspora/que amas/ao ovo da reconstrução/que amamos/Não há sémen/Não há deserto que resista o amor à primavera”
Ainda no mesmo canto encontramos o poema, “RAIZ & ROSTO” – que fala do poder optimista e sonhador dos ilhéus:
“De manhã! Há rostos & ombros/Que amadurecem árvores no horizonte/E o céu! na sua casca amarela/salpicado de formigas e estrelas/É um fruto indeciso que não tomba”.
O poema retrata o peso do deserto de Sahel nas ilhas, e, mais uma vez, a luta titânica, discreta, que os seus filhos travam diariamente “entre c1 – “E ao meio dia! o deserto/no seu crânio de vida/salpicada de sombra E de sol verde/já não fala a ilha/já não fala a árvore/Do seu falo de solidão”.
2 – “Ó sol & soldado de pão/sem pão & caldeira E a multidão por amar/sem ovação & Podium E o peso olímpico por erguer”.
A necessidade de expansão, de universalização do ilhéu para além-fronteiras devido à seca, a um tempo acarreta consigo a dilaceração e a gratificação, patentes em:
“Sabias? amor/Que o “lh” de ilhéu ilhota/É antena de astro longo/sim! há palavras com pés/ om asas/E no sangue das palavras/há pastos para Ovnis/Mas no “lh” da palavra Julho/ começa/esta dor & júbilo/De ser ovo que rola/Do útero para o universo”.
Com o poema, “HOJE CHOVIA A CHUVA QUE NÃO CHOVE”, do canto segundo, o poeta prossegue retratando a capacidade optimista do homem – a euforia não tem freio aqui – pois já é o próprio estigma africano que faz com que se fabriquem meios próprios (se inventem) para vencer as adversidades naturais do “Sahel”. Aqui, o Poeta miniaturiza Deus (reparar p/ ex: no uso de “d” minúsculo de deus ao contrário do utilizado noutros poemas), Deus aqui é “persona” secundarizada, pois, seu poder, que, afinal, não usa para com os desditosos, nada é perante o hercúleo desafio do ilhéu, que sozinho produz a sua própria sobrevivência:
“E as ilhas chovem da casca do homem /Na ilha! a cicatriz de deus é grande. /Mas a ferida do homem é maior /Canção! no arbusto da viola Que chove /A lírica de deus é grande /Mas a música do homem é maior”
O poeta diz:
Em “chove sobre a hora/Que o sol depõe sua querela na pedra do arquipélago E vem ilha + ilha com pés caligráficos + a/Ferida de pão na meia lua dos joelhos”, querendo significar com isso que o povo destas ilhas aprendeu a chover a sua subsistência, aprendeu a chover a sua própria vida. O povo destas ilhas apreendeu a realidade que cerca e faz disso força para a substância da sua fome. Aprendeu a inventar novas formas de suportar a inexistência de chuva, construindo novos meios de superar a desgraça – o homem cabo-verdiano é um artista nato.
1 – “A criança ficou bêbada de chuva sol/E apostou/Que as mãos E as ilhas/voariam gémeas/Assim aves de espaço & Tempo/E diz a criança/Sob o olho da terra arável/sou semente/por onde sonha/A cabeça do arquipélago”.
2 – “E diz a ilha a cada letra do alfabeto que chove/do olho da arte nasce o oásis do artesão”.
éu e terra”:
“O PESCADOR O PEIXE A SUA PENÍNSULA” – é o canto terceiro do livro, que exalta a actividade piscatória e revela o pendor imponente do pescador que se entrega totalmente, de corpo e alma, à sua faina. No mar, quem se impõe é o mar, por isso é preciso a paciência e a perseverança na alma – do pescador à espera. O mar é terra arável, a substância que nos nutre.
“Quando a ilha é sacerdote/E o mar é catedral/e o poente oração/Que se ergue/Entre o mar E o seu cardume/o anzol aproxima-se do ofício/como o céu da boca/Entre a hóstia e a comunhão/E diz a proa à sétima onda/Amor! Entre o peixe e o pescador/Não há melhor isca/Que o bater do coração”.
Aqui, o poeta pinta toda a coreografia do mar e da sua “população”, destacando-o como o melhor bem destas ilhas – a substância que nos nutre, “terra arável”.
“De ser/A safra mais nobre do ano/E a puérba será a onda que levará de mar a mar o baptismo/de sangue & sílaba à boca das maternidades”.
No canto quarto, “ODES DE CORSA DE DAVID”, o poeta muda de tom e aproxima-se sensivelmente do panfletarismo para homenagear aqueles com quem comungou a mesma ideologia. O intertexto bíblico anunciado no título não se afirma no desenvolvimento do poema, a não ser na comunhão de princípio do canto. O poema canta o “camarada Agostinho Neto”, companheiro, político e poeta, exaltando a sua acção a favor da África; canta Manecas Duarte – da ilha ao amigo/ Do arquipélago ao camarada; o P.A.I.G.C. e a sua acção libertária; e canta também os feitos de Amílcar Cabral, denunciando o seu assassínio e a consternação daí resultante, elevando-o como exemplo para a construção destas ilhas no mundo. É a homenagem aos mortos, cuja memória permanecerá na memória da gente:
“Que vão/pelo tambor da terra/Que o espírito soletra/E de cratera em cratera/De savana em savana/emergem! Amílcar/ colinas de mar alto/Primogénitas do teu sonho! onde/As flores de Setembro/alçam/no tronco do mesmo drama/o povo E a glória/ da tua concha bivalve”.
Em “TAL ESPAÇO E TAL TEMPO”, do canto quinto, o autor retoma o tom e a temática inicial para enaltecer a proeza titânica, criadora do homem destas ilhas, que aprendeu a fazer das fraquezas forças e a tirar proveito da precária situação que o envolve e o agride:
“Como o som cresce na fruta! na árvore/está o tambor/E canta a erosão: a política de sedução”.
O poeta exalta, soberbamente, a figura do cabo-verdiano, que não conhece
fronteiras físicas e possui um conhecimento profundo da vida, pois sabe muito bem dominar a natureza agreste que o rodeia, impondo-se altivamente na ilha e no mundo.
“Oh! oceanos! que ladram à boca das tabernas! Se o sangue deste homem/é tambor no coração da ilha/o coração deste homem/é corda no violão do mundo/E os joelhos, rodas que vão! hélices que sobem/com ilhas no interior”.
E o poeta diz – “Não Há Fonte/ Que não Beba/ da Fronte Deste Homem”. Ainda no mesmo canto, o poeta exalta a figura imanente e evanescente da mulher na vibração fecundadora das ilhas, e anuncia a presença constante da mulher na dinamização da actividade mais audaciosa do cabo-verdiano. A mulher, no fundo, é a força impulsionadora. Detém a energia que transforma e que transparece no homem. Por causa dela é que tudo se faz.
Ela é a razão de tudo e o bálsamo da vida dura da ilha.
“Versículo! muito há de novo/debaixo/da roda do sol/ /no espelho da tua roda/o rosto da ilha é um sorriso de mulher”.
Mulher é na palma /palma da tua mão /Que explode a estrela da manhã /Quando a aurora /bate /à porta da ilha /com a flor do teu osso /E do caos da vida! quando… /O umbigo do dia é deserto longo /E a areia do teu corpo /viaja /pela boca marítima do meu regresso /Como é belo! Bela /A frescura do teu rosto /Abrindo oásis /Na cratera da minha alma /em sombra acesa”
A civilização crioula situa-se, racialmente, das misturas: Mestiço/mestiça – “Tempo de Ser Ovo/ Ovo de Ser Tempo” é um poema que apela ao regresso dos emigrantes à terra natal. O poeta reclama, com veemência, a presença de todos aqueles que se encontram além-fronteiras. O poeta personifica a ilha que chama, implora aos seus filhos o regresso ao seu ventre, pois as ilhas agora estão livres e já não padecem a fome da colonização – “a fome de Ambrósio É pão sobre o forno” –, a pátria precisa dos seus filhos para a construção e chama a todos.
Há transfusões/Que aguardam/pela tua mão de /semear/vem! pelo relâmpago/Que funde as árvores/ /nas nossas entranhas/E darei ao teu rosto/Os olhos da minha /Pátria”.
O poeta pede àqueles que partiram para se lembrarem que esta é sua terra. Aqui é que nasceram. Aqui é que fizeram a sua história – é a grande incubação. A independência não é gratuita.
“Vem! E ergue a tua árvore/aquiO poeta não se esquece de um grande poeta cabo-verdiano que, como ele, proclama um futuro promissor às ilhas, e diz “Bom Dia! – António Nunes. Bom progresso”:
“Grávida/o ventre da ilha/já empurra/ /A roda do mundo entre dois polos”.
E o poeta reserva um espaço para ele, para a sua poesia, que é a poesia deste povo das ilhas na sua vivência de ilhéus:
“A poesia é viola na prosa dos dias/E envelhece a pedra/ /que não quebre o espelho da noite Que dança/sobre a ilha”.
O ritmo sempre circular desta obra faz com que deparemos, uma vez mais, com a denúncia de uma situação que só nos faz caminhar, com mais firmeza, mais decididos, pois já aprendemos a chover as chuvas, aprendemos a chover as nossas chuvas que não chovem. O homem cabo-verdiano aprendeu, ao longo dos tempos, a conviver com a seca, a desdita, as insuficiências, e está decidido a não aceitar passivamente a fatalidade, e afirma já não ser um inválido, pois possui o poder da construção conquistada com a liberdade – A seca é uma arma. A fome um desafio. Os dados do problema alteram-se. É como Ovídio Martins disse – “Gritarei, berrarei”… Somos, podemos fazer a guerra, temos a nossa acção nas mãos:
“Mesmo que o céu não chova/E o sol e a lua/sejam/cordas partidas no violão da ilha/Mesmo que a chuva seja esta noiva de usura/Este umbigo/Esta corola de ausências Entre a rocha e o rosto/Mesmo/Que o vento/vergue no eixo da terra E nos mastros da alma/os ossos & séculos de sangue & secura/Mesmo sendo! Já não somos os flagelados do vento leste”.
E o poeta acrescenta que já somos os autores do nosso pão – somos lutadores.
“Aqui! onde/A acção escreve sobre o Pensamento/modelando a rocha e o resto/Deste Cabo/Deste teatro verde de vida”
O Poema, com “Prólogo” & Proposição, propõe o fecho, em aberto, de Árvore & Tambor, funcionando como estigma para a gesta de Pedras de Sol & Substância”, última parte desta trilogia epopeica.
V. Pedras de Sol & Substância
Depois de Pão & Fonema e Árvore & Tambor, pejados do homem cabo-verdiano e da sua existência, circunscrito, ou condicionado pela necessidade de viver, em estreita dependência do amor à terra; da sementeira e da colheita, e das desditas que essas relações engendram, nada mais natural do que ansiarmos e esperarmos encontrar, a
! À Porta /da cabana/onde/a lança do teu Pai é soberana”.
seguir, outros temas e outras abordagens, com novos enfoques e novas questões. Entretanto, surpreendemo-nos perante, praticamente, as mesmas vertentes e os mesmos ângulos, tanto em termos temático como ideológico e até estético-estilístico.
De facto, em Pedras de Sol & Substância, também, tudo gira à volta do sustento, do que nos nutre o corpo e a alma, numa luta incessante com a terra, a sementeira, a colheita, e o desfrutar da vida.
É o retrato do homem cabo-verdiano, que possui uma força individual, existencial, que o faz viver e querer viver, sem se render sucumbido perante o signo de fatalidade das ilhas.
Em termos estético-literário, não nos deparamos com grandes diferenças, relativamente aos outros livros, sendo comum uma linguagem imagética e polifónica, inundada de sinestésicas surpresas e inconsequências.
Entretanto, se aprofundarmos um pouco mais o nosso olhar pelo húmus da sua substância, numa leitura dialéctica, podemos vislumbrar algumas diferenciações, não só no que concerne à forma de enunciação como ainda no que diz respeito à sua visão, (ou cosmovisão) e apreensão do real, emanente e transcendente, e do mundo e mundividência, em geral.
Há como que uma nesga de luz sobre o animus espiritual do homem cabo-verdiano, que o mantém desperto para o mundo e suas contradições, rejeitando tudo o que possa subjugá-lo e destruí-lo.
É como que uma silhueta esculpida pela pena do poeta, na rocha da memória dos dias, das enxadas, do homem e da sua faina em busca de pão. E é o peso do vazio da ilha, (nua e sem recurso) sobre as almas dos seus filhos. É a descrição das ilhas, estéreis, secas, inertes e inermes, pejadas de pedras e mais pedras, quais lunáticas crateras, sendo terra de dor e de suplício, mas idolatrada e amada, como fonte ou seiva, ainda que escassas e diminutas, para todas as bocas.
Eis aqui o desalento perante a seca; o desânimo frente ao nada, mais o alerta da fome em premência de suprir-se, e as lágrimas desconjuntadas e desconjugadas perante o sangue forte do sol que trucida e massacra. É, enfim, o homem das ilhas entre a taberna e o grog, a solidão e o cio, os deuses e os orgasmos, e a sua inseparável enxada, com a dor, a amargura e a morte, sempre ao redor, a espreitar, tal a espera de uma brecha pelos interstícios do olvido ou da apatia.
É um espaço donde emerge uma reflexão profunda sobre a essência das coisas e do devir, e também sobre a filosofia inerente à desdita do cabo-verdiano – com a sua virtude de saber carregar a sua cruz, enfrentando a desolação, a miséria e as danças contramaré com estoicismo.
Em tempo de contradições e ambíguas coabitações; de revoltas caladas, inconsútis e impossíveis, encontramos a tese sobre as esperas, sobre o que será o homem, senão um ser minúsculo, da bravura do pão, perante a grandiosidade da natureza, detentora da decisão final. Pois, o homem procura a substância e a subsistência, como pode, mas só a natureza favorável pode permitir-lhe a glória almejada. E daí a vez da espera ou da oração.
Abrindo com um poema intitulado Oráculo, em vez da proposição, como em Pão & Fonema e Árvore & Tambor, esta terceira Parte d’A Cabeça Calva de Deus marca já a sua diferença, propondo, desde logo, uma profecia do poeta, que se predispõe a revelar que todo o deserto e estiagem, abordados anteriormente, possuem um desfecho menos sombrio – para não dizer mais risonho – ,em que a estiagem será ultrapassada graças à sabedoria do passado e à força de vontade do presente, onde a palavra tem um poder soberano, fazendo uma alusão significativa ao “cântico da manhã futura” de Osvaldo Alcântara.
“Toda palavra é útero de sete pedras/ E/ Toda a pedra é um poeta bissexto/ Leva quatro anos de pudor/ E quarenta & tantos de paixão/ Para inundar o deserto da estiagem/ Com o dilúvio de chama que bebe/ Nas crateras do jazz & batuque da esperança”
O Canto Primeiro – Sol & Substância -, dessa Terceira Parte, fala das ilhas, desde a sua formação até aos primórdios do seu povoamento.
Em A cesariana dos três continentes, que funciona como o Prelúdio, de Jorge Barbosa, com a descrição das ilhas desertas, sem nada “ nem homens nus/ nem mulheres nuas (…)Havia somente as aves de rapina(…); vemos que as ilhas se encontravam vazias e incógnitas do seu desígnio que já estava vaticinado, “Antes da moeda do Corpo Ao Capital da Alma/ Antes da Luz / No mar da Memória”.
Aqui, há o questionamento sobre a origem e destino das ilhas, como que numa crónica histórica do arquipélago, em que se vai narrando o singrar das ilhas no mundo, o seu parto e crescimento, ao longo do tempo, interrogando-se à Rotcha Scribida “Ó pirâmide de vigília/ Filha! Mãe! Irmã gémea da ilha?.
A referência à “Rotcha Scribida” é pertinente do ponto de vista histórico porquanto levanta a questão sobre a origem das ilhas e o seu eventual povoamento entes da colonização portuguesa.
De caminho, vai proferindo um discurso sobre o progresso e a nova ordem das coisas, em que a violência impera, entre a paixão, o amor e o ódio, retratando alguns absurdos da nova era, surgida com a colonização; em chegando as caravelas e o estigma do novo mundo.
“Quem não ama? os navios loucos da minha aldeia/ Abalroam na planura! nos baixios/ Os casebres da vizinhança/ À procura de mastro & oceano no olho das salinas/ Meio dia! Deus & demónio/ Habitaram! Desalojaram estas paragens(…)
Retomando a posição de Camões, em Lusíadas, sobre a expansão portuguesa, aborda a questão do peso da Religião nas ilhas e na conversão ao cristianismo das novas gentes, surgidas com o descobrimento, que vem na sequência da febre europeia na demanda do ouro, com a descoberta do sul, e da África, crucificada no calvário da dor e do abandono. E aproveita para se referir à herança cultural e genética cabo-verdiano, resultado do encontro entre o Norte e o Sul, e da necessidade de ultrapassar a mágoa das afrontas, injúrias e vitupérios sofridos, visto que somos mesmo sangue, ainda que diferentes racial e culturalmente.
“Ó pedra de amor! ó pedra de amigo/ Vieram pela proa & onda/ De cinco séculos de mágoa/ Vieram pela cruz & espada/ Da boa esperança/ Fizeram agoada! entre/ paz & pavor! amor & pólvora/ E de abandono! Deixaram/ A ferrugem De uma bala/ No coração verde de Amílcar (…) Amor! pela sintaxe dos sexos/ E/ pelo úter-trágico-marítimo-da-língua (…) Renascem auroras & rictos/ De geminações mestiças…/ É Bárbara – que por amor! liberta/ As cinco quinas de Camões (…)/Amor! que o ontem me acuse/ E o amanhã me condene/ a dor nos advogue/ a cicatriz nos absolva/ Se a ilha der ao sol/ o olho negro do teu soco.”
Em “Na Morna/Na Mazurca/O trompete da evasão”, aborda a necessidade e naturalidade da evasão no seio da nova era, destacando a capacidade do emigrante cabo-verdiano em “ficar partindo, ou em partir ficando” ao levar toda a sua cultura e vivência na sua bagagem de viagem, o que faz com que não consiga integrar-se nunca, visto que leva com ele, na sua alma, a sua terra-natal, a qual está sempre presente em tudo o que faz lá fora.
E abre um parêntese aqui para espraiar um olhar à música cabo-verdiana, e a sua inter influência, à luz do progresso e da evasão.
Quase todo o poema é dedicado à emigração, com enfoque ao amor e apego do cabo-verdiano à sua terra, que emigra, já com o pensamento no regresso, e que só vai para poder voltar, como diz o poema de Eugénio Tavares – “Si ka badu, ka ta biradu”. A partida é a sina “sine qua non” do regresso. A tese aqui vai no sentido de demonstrar que o cabo-verdiano, mesmo partindo, fica na terra, pelo sentimento e pela alma, que estão sempre presos às suas coisas.
“Emigrante! Aquele/ que leva no estômago/ Uma ribeira de pedras soltas…/ Ribeira que morre antes/ para nascer depois/ Entre/ a erecção do Monte Cara/ E/ as pernas de
Pico d’Antónia/ /Todo o emigrante é um coreógrafo/ Que leva na ópera de metal & osso/ Os acrobatas de «Pedra Rolada»/ E sendo arquitecto!toda a mão que emigra/ A ilha é telha! cada vez mais/ telha/ no tecto do mundo.”
Resumindo, podemos dizer que esse primeiro canto constitui a génesis de Cabo Verde, por analogia à génesis bíblica, em que há um antes e um depois do 1º dia, que se refere à pronúncia e à crónica sobre o estado desértico no início de formação do arquipélago/nação, advindo um 3º dia, com o 2º dia antes, e 4º depois, que se referem aos primórdios da formação do país, em que cada etapa representa um estádio de maturação e prenúncio de um percurso e de uma busca de um caminho, para, a seguir, sobressair o 5º dia, com a sua bonança e tempestade, já próximo do destino traçado, do desígnio final, que, finalmente, chega com o 6º e 7º dias, este último, já com o seu dia seguinte, em que tudo se metamorfoseia, para, a seguir, acontecer a manifestação da (re)construção, construída (como diria o próprio poeta) com os seus recursos próprios e espontânea” fertilidade, embora precários.
“Dragoeiro! Das pernas do vale à face da montanha/ As crateras modelaram/ Teu porte/ De porta-bandeira/ Entre o céu E a terra/ Como se teu umbigo De mundo largo/ Já não fosse! O cálice/ De sol & substância/ No vulcão da vida (…)
(…) Assim foi/ Antes & depois do 7º dia/ A erupção de sol & substância/ que vai solta/ Nas sementes e árvores// Das ribeiras/ que vão & vêm/ Assim fartas de fome & famintas de fartura.”
O 7º dia, aqui, confirma, não só, a tese da génesis, mas, também, do oráculo e da profecia, simbolizando um ciclo completo, e “uma perfeição dinâmica”; significando também uma mudança e uma renovação. Deus descansou, no sétimo dia, após o ciclo de seis dias criando o mundo, constituindo, o 7º dia, por isso, uma bênção. E não é de se esquecer que nos contos e lendas, o sete representa as sete etapas da evolução.
Com “Litografias para as festas de Sâo Filipe” há a evocação de alguns artistas, e principalmente da música cabo-verdiana, mas fundamentalmente das festas de bandeira de São Filipe que são descritos, desde o seu começo até ao seu auge, de forma pictórica e pitoresca como se os versos fossem paleta de pincel, tal Manuel e Luísa Queirós Figueira, compondo, poeticamente, quadros cheios de aliterações onomatopeicas que traduzem, de facto, todo o colorido dessa festa.
“Orquestrando a corrida/ Vinham cavalos! fazendo/ desfazendo nós/ Com tiques de nobre/ maneios de crinas & volteios de cauda/ Vinham! Pelo som/ que perde na música que perdura/ Magoando violas violões violinos/ Entre/ o peso das lavas EComeçando com a corrida de cavalos, que “vinham “fazendo/desfazendo nós (…) Magoando/violas violões violinos”, passando pelo toque de tambor e dos pilões pilando na “celebração da palavra” (…) e d’A litania política dos tambores; até aos foguetes e fogos de artifícios; até ao regresso do emigrante e à missa, e ao “sono do Soldado no Sobrado + balir da cabra no telhado/ (…) Quando por fim! A festa era só” (…) o olho da cabra sobre o olho da terra”.
Mas essa evocação não fica por aí, ela refloresce em outros versos e cantos, já transmudada em homenagens a algumas personalidades literárias cabo-verdianas. Com destaque a António Aurélio Gonçalves – Nhô Roque, e à sua noveleta Virgens Loucas, numa, como que homilia poética, em que a figura do mestre e venerando escritor é exaltada, a par do novel consagrado escritor, nosso contemporâneo, Germano Almeida, que simboliza o continuador de Nhô Roque, numa geminação prosaica entre São Vicente e a Boa Vista.
“Gonçalves! Gosto de ir, letra a letra, avante. Torcer o/ tornozelo na geometria da tua prosa. Ir a cavalo do/ acento agudo, grave, esdrúxulo e ouvir no tecto da/ sílaba o bater do tambor celeste.
(…) Enquanto isso, o optometrista, mestre nas artes de/ cabotagem, interrompe a leitura, fecha a noveleta no/ lugar da Baia, onde de gatas nasce a lua cheia. Atravessa/ a fauna marítima e mete anel de noivado na mão fantástica/ que Germano deu à ilha da Boa Vista.”
Pedras de Sol & Substância simboliza a alquimia da ascese e da purificação em que a pedra se torna em Sol (que é o ouro) e, logo, em substância. É a transformação, alquímica, daquilo que não tem serventia em algo (transcendental) fundamental, porque “As pedras olham-se grávidas/ Do deserto vermelho das palavras/ Há fogo nas pedras novas/ Há luz nas pedras remotas/ E amor & ódio/ no cotovelo do abraço delas/ Como! Se não fosse lar/o lugar do vento/ o lugar da ilha/ Onde! O desespero da paixão remoça.”
a leveza das patas.”