O eleito do sol
de Arménio Vieira
É de uma certeza, quase absoluta, quase matemática, que qualquer leitor que tenha lido, ou que venha a ler, o romance O Eleito do Sol, de Arménio Vieira, ficará com uma interrogação pendente perante a transperspectivação possível que sugere. É evidente que todos terão a sensação de que a inocente história, aparentemente fantástica, deve ser vista com outros olhos e interpretada com outro senso. Não é uma mera história. É mais do que isso. É preciso desbastar a floresta até se encontrar uma clareira. Também arrancar a máscara que apresenta e ver a verdadeira face que esconde. Despir as roupagens que usa. Raspar a camada de tinta que recobre a tela original.
De facto, é necessário transpôr toda uma simbologia estritamente irreal, de um universo simbólico e virtual, para um espaço concreto em que a textura, estrutura e contextura do texto possuem um valor mais além do que uma simples leitura. Isto é, encarar a mensagem como um raio refracto, que vai dos recursos estilísticos, estéticos e ficcionais para a tessitura intrínseca do todo cromático, que é a intenção última ou a realidade anunciada, verdadeiramente.
Que quererá Arménio Vieira dizer com O Eleito do Sol? Qual será a insinuação feita? Por que terá ele viajado até ao Egipto para ir exumar figuras mitológicas; impregnar-se de cenários e espaços fabulosos, quando à sua volta existe muito em que pegar? Qual a intenção, qual o objectivo deste estranho comportamento, quase bizarro, quase peculiar, quase anacrónico, talvez? Será que pretende ensinar-nos a história do Egipto, de uma forma lúdica, aliciante e pedagógica? Será? Como disse Shakespeare: “to be or not to be, that the question”.
Realmente, é quase difícil penetrarmos nas redes invisíveis deste texto até ao seu âmago, a fim de fazer uma interpretação plausível. Seria preciso levantarmos uma ponte de ligação entre as principais linhas de força e de expressão e o conteúdo e a mensagem, quer seja a nível das estruturas formais e narrativas que o enformam, quer a nível da concepção vivencial que nesses textos impregna o tecido muscular da nossa existência.
De facto, após várias leituras atentas e criteriosamente analíticas, cheguei à conclusão de que O Eleito do Sol constitui um ícone – uma imagem com um valor específico ou com uma função determinada.
Toda a sua narrativa apresenta-se, nitidamente, como uma imagem, ou um símbolo. Ezra Pound diz que “a imagem não é uma representação pictórica, mas aquilo que apresenta um complexo intelectual e emocional num instante temporal – uma unificação de ideias díspares”
Por outro lado, o símbolo é aproveitado em campos muito variados: Biblicamente é usado segundo uma relação entre o “signo” e a “coisa significada” – relação metonímica ou metafórica, que, em literatura, é usada como um objecto que se refere a outro objecto, é o resultado de uma imagem, frequentemente utilizada com valor específico como um ícone, o que implica um sistema e uma certa convencionalidade.
Daqui se poderá compreender, talvez, melhor a minha tese de análise de O Eleito do Sol, a qual, avanço, não constitui uma versão inquestionável, nem, tão-pouco, uma premissa insofismável. Para já, esta abordagem constitui um desafio, quiçá, uma ousadia, mas não foi um empreendimento sem uma reflexão e um estudo aprofundado, em que muitos caminhos e pistas de interpretação se abriram à minha frente. Lembro aqui uma frase de Dámaso Alonso, que diz que “o crítico é um ser em quem as qualidades do leitor estão exacerbadas; o crítico tem de ser intuitivo, conhecedor e científico”.
Ora, para corroborar os meus pontos de vista, convém referir, aqui, algumas análises e interpretações de textos simbólicos, feitos ao longo dos tempos e que dão uma imagem diferente da que uma simples leitura forneceria. Isto para mostrar ou salvaguardar a minha relação dialéctica com o O Eleito do Sol, que possibilitou tal leitura, a qual poderá parecer fabulosa.
Sobre a hora final, a Bíblia fala de poços e fumos que escurecem sóis e espalham doenças; gafanhotos, escorpiões e mortes desejáveis mas, quase, impossíveis.
A propósito desta mesma visão, Hermínio C. Miranda dá a sua interpretação dizendo que tais poços e fumos representam artefactos nucleares que espalham doenças, enquanto os gafanhotos com caudas de lacraus simbolizam supersónicos reflectindo a luz do sol, deformados pela distância, em barulhos infernais como carros de guerra arrastados por cavalos.
Pelo exposto e, também, pelo não exposto, pode-se, facilmente, verificar que, por detrás das coisas, há sempre outras coisas e que, às vezes, aquilo que mais simples nos parece, mais complexo é. Aliás, é o próprio protagonista, o Eleito do Sol, que nos alerta sobre isso, como que numa chamada de atenção, dizendo – “Nem tudo o que parece é”. Identicamente, “nem tudo o que é parece”.
Passando aos factos, posso dizer que a primeira mensagem deixada por este romance é a de que escrever exige recursos extremamente refinados e percepção clara, nítida, de uma concepção artística. É necessário mais do que um simples espírito de escrever e estar na moda. São precisos, uma vivência, um estudo, uma vontade e uma criatividade imaginativa, fértil, pois, não se escreve somente em função do depoimento das nossas experiências como seres sociais; também em função da criação de uma ilusão da vida, suficientemente convincente. Realmente, uma obra de arte, ou literária, deve possuir “uma potência de historicidade profunda, constituindo-se como obra de estudo sobre o comportamento humano; um meio de veicular conhecimentos e verdades, retratando realidades quotidianas e históricas dentro de uma dinâmica estética”.
Será que Arménio Vieira conseguiu isso com O Eleito do Sol? Vejamos.
Uma obra ambígua
O Eleito do Sol é uma obra ambígua, que possui uma sobreposição de histórias difíceis de serem separadas. Lembrando-me das lições de Química, eu diria que O Eleito do Sol é como uma mistura em que é possível separar, facilmente, por meio da electrólise, os seus componentes, diferentemente da combinação. Há, pois, num mesmo texto, num mesmo discurso, pelo menos, dois ambientes diferentes, dois espaços separados, dois enredos e duas histórias ao mesmo tempo, as quais, entretanto, se encontram conectadas em simbiose, devido a um denominador comum ou a um vector tangencial (no campo onomástico e toponímico não têm um valor fundamental, pois o importante aqui é a denúncia, o retrato que se faz). Seria como uma corda umbilical a ligar gémeos. Imaginemos ainda o conceito matemático de dois conjuntos com uma zona comum, a que se dá o nome de intersecção.
Assim também se encontra o ideário d’O Eleito do Sol. Eis a equação: por um lado, há a narrativa de uma personagem egípcia e quase que a saga de toda uma raça, toda uma nação. Paralelamente, como que numa outra dimensão, deparamos com um fundo histórico e social. Imaginemos, identicamente, à moda das teorias de ficção científica, a existência ou coexistência de dois mundos paralelos, coabitantes num mesmo espaço e num mesmo tempo, mas cada um com as suas próprias personagens – p. ex. o famoso “Multiverse”, de Michael Moorcock. Estabelece-se, assim, por estarem em dimensões diferentes, uma relação de contiguidade, que é chamada, na literatura, de sinédoque. A questão da raça egípcia – negra, branca, vermelha, amarela, mestiça (?) – encontra eco na exótica miscigenação cabo-verdiana, que a torna indefinida perante a perspectivação da sua identidade. Será africana, europeia, nem uma, nem outra? Do mesmo modo, sobressai outra bissectriz (comum): a arreigada credulidade, a religião e a organização social (até certo ponto) estratificada em classes bem definidas, com os seus direitos e deveres, mas nunca com a soberania de decisão, sequer com o seu parecer – a ferida é violentamente remexida aqui. É posta em causa a desmedida ambição do poder.
Fazendo, então, uma pequena catarse, i.é., depurando as histórias, colocando cada uma na sua tribuna, o que, em primeiro lugar, sobressai, é o sonho. Há como que um alerta relativamente a esse aspecto. Afinal, existe apenas o relato de um sonho e não a narração de uma realidade ou de algo que tenha passado em concreto. O alerta incide sobre a ficção que se vai criar através de dados históricos. A verosimilhança surge com toda a força, o que reforça o crédito do que se vai contar, pois, sabe-se, de antemão, que se está perante uma ficção, uma criação cheia de imaginação, e não uma verdade pura, o que enriquece, sobremaneira, ou, melhor dizendo, confere, indiscutivelmente, um valor literário e estético à obra. É de se realçar que na antiguidade e, também, na ciência psicológica, os sonhos possuem um valor extraordinário, pela mensagem que comportam e que deve ser interpretada, pois, representam enigmas de coisas que irão acontecer – são profecias.
Uma analogia com o processo de enunciação do Diário de Édipo, de Alberto Ferreira, é-me forçoso, pois, há uma semelhança extraordinária com este, em que a personagem vai contar algo do passado (algo histórico) através de uns manuscritos encontrados.
Outra obra com a qual faz paralelo, creio eu, é Thais, de Anatole France.
Protagonizando um escriba egípcio, o qual representa um expoente máximo de sabedoria e conhecimento no Egipto, releva-se, assim, a importância da escrita e da sabedoria. Chama a atenção para essa questão fundamental, para relatar e denunciar coisas, ao mesmo tempo que mostra, entretanto, a necessidade de um certo disfarce, de um certo misticismo que desafie e confira um pendor original ao que se veicula, não só pelas surpresas que causa mas também pela diversidade de leitura que possibilita, o que lhe garante, evidentemente, um lugar de destaque. Aliás, esse lugar estético e temático surge devido, precisamente, à idiossincrasia do autor, o qual, pelo que dele tenho lido, procura sempre alcançar uma certa peculiaridade e uma certa sublimidade, quanto mais não seja pelo arreigado espírito poético e estético que lhe é inerente.
O Eleito do Sol é uma personagem escolhida naturalmente. Isto, tomando o sol como símbolo da natureza, que existe sem artifícios nem convencionalidade. O poder, neste contexto, ganha outro valor. Representa o poder sobrenatural e perene, que supera tudo o mais. O Eleito do Sol possui muitas características idênticas às das obras picarescas. A narrativa é de um tom autobiográfico e a personagem, de cariz pícaro, apresenta-se um tanto ou quanto atrevida, hipócrita, cínica, inteligente e perspicaz observador dos seus superiores, com uma língua e uma linguagem irónicas e viperinas, sempre em forma na orquestração dos seus golpes astutos e premeditados. É, no entanto, bastante simpático ao leitor.
Toda a história está envolta em cenas caricatas, um pouco semelhantes às tragicomédias, em que se põem os poderes, as sapiências de suportes prepotentes, e muitas outras coisas, a ridículo.
A linguagem é fluente, permeável e cativante. Exerce uma forte empatia no leitor, o qual anseia, por assim dizer, discorrer de um só fôlego todos os trâmites que a consubstancia. A forma é coloquial, instintiva e desenvolta, assim como as estruturas e sequências narrativas. As acções e as instâncias dramáticas desenvolvem-se num ambiente de franca bonomia, boémia e humor. A ironia e a sátira ganham um certo sabor próprio, ao se aliarem aos calões, gírias e regionalismos, tão próximos do nosso quotidiano.
As figuras de retórica são empregues com bastante propriedade, principalmente as comparações e metáforas, abundantes, que conseguem emprestar uma dimensão quase precisa aos quadros que sugerem.
O drama subjacente se dilui, então, perante este tom brincalhão, em jeito de eufemismo, o que reforça ainda mais a sensação de fantasia e sonho. Parece ser propositado tal facto, para desviar o leitor, num imediatismo de leitura, do verdadeiro objectivo.
Quem é O Eleito do Sol?
O protagonista d’ O Eleito do Sol é um escriba aventureiro que foi expulso da confraria dos escribas por ter criticado um alto oficial do governo, o titular da pasta de Educação. Encontrando-se no desemprego, urde toda uma trama para ascender ao trono, aproveitando-se da situação crítica, quase caótica, em que se encontrava o império, com ameaça de invasão dos hititas por todos os lados, mais a rebelião interna dirigida por inúmeros partidos.
Fazendo-se passar por neto do sumo sacerdote, chama a atenção do Faraó Amenófis XXVIII sobre si, ao ponto de se lhe dispensar um acompanhamento particular. Conseguindo ganhar uma grande fama e destaque ao se proclamar escriba, pintor, médico, feiticeiro e contador de estórias, através de inúmeras acções exitosas, acaba por ganhar a confiança do governador de Karnak, Ramósis, braço direito do Faraó, que o nomeia comandante da sua força, no ponto mais nevrálgico da invasão. Tendo, aí, vencido a batalha, organiza um exército de mercenários com o oiro e os despojos capturados, entra em Mênfis e retoma aos hititas o império dominado. É proclamado, então, pela população, guia vitalício e, depois, Faraó. Como descendente de Akenaton, o Herisiarca, retoma o culto de Aton, as suas obras e, inclusive, o próprio nome.
Em síntese, seria essa a estória d’O Eleito do Sol, a qual se encontra, entretanto, bastante condimentada com diversas façanhas e peripécias picantes, tais como: “o hurro de morte da Esfinge”; “o velho feiticeiro do Baixo Egipto”; “a campanha contra os ratos azuis”; “a invocação do Divino Toth”; “a cura da bela Hatshepsut transformada em homem”; “a iminente luta com o bruxo Necromante”; “os combates com um gladiador núbio, um boi e um leão”; “a interpretação de um fenómeno cósmico que preocupa o Faraó”; “a sua nomeação a condestável do império”, etc.
Claro que, como obra literária, e, portanto, como algo criado, imaginado, O Eleito do Sol evidencia-se pela subversão que os factos históricos ganham ao longo da sua narrativa, que vai desde a mudança dos nomes e dos títulos até à flagrante subversão das estórias contadas pelo vencedor da esfinge à divina Hatshepsut, talvez com a intenção de mostrar como deve ser visto o enredo desta história egípcia, pois, como disse o outro, “ler e recitar a letra qualquer um pode fazer – basta que tenha memória –, mas divisar por trás dela o vulto imenso do espírito, isso é dado a poucos, porque muitos são os que olham e não vêem, escutam e não ouvem, falam mas não dizem nada.”.
As denúncias
Providenciando, então, a modos de uma exegese, um istmo entre as duas fácies desta narrativa, a polarização de sentidos é marcante. O autor quis ser profeta porque os dados já estavam lançados e o devir dos acontecimentos estava largamente delineado. Possui o exemplo da história com o qual faz intertexto, possui elementos gritantes e convincentes de uma situação tensa, de uma realidade insustentável, prestes a ruir. A lógica da natureza dita a estratégia a seguir. Eis o fenomenal retrato, eis a fenomenal profecia.
À semelhança do ideal da sociedade egípcia, o Poder em Cabo Verde encontra-se fortemente centralizado por uma minoria que se elege como única via de dar ao país o impulso necessário ao seu bem-estar. A burocracia, o centralismo, a prepotência, a presunção, o luxo (vivendas grã-finas, bairros selectos, etc.) e a repressão estão bem presentes nesta sociedade marcadamente estratificada. O contraste se vinga relativamente à descrição minuciosa do espaço, onde a camada populacional habita: caixotes de lixo, gatos e cães ordinários, becos, vielas e casotas (lar dos pequenos funcionários).
Mas a denúncia não pára, ainda, por aqui. Mesmo as histórias mais inocentes contadas pelo escriba se empenham nisso. Assim, por exemplo, a história, de puro horror, do prisioneiro adverte-nos sobre a situação de dependência pela qual muitas pessoas passam ao abraçarem cegamente uma ideologia. O fanatismo leva-as a cumprirem, à risca, as regras ditadas por um fantasma, até ficarem presas à sua vontade; o caso dos unicórnios e bicórnios assemelha-se a uma alegoria cujo referente se encontra radicado nas várias ideologias existentes. Há como que uma referência aos dois grandes regimes que dominam o mundo: o do Leste, Socialismo/Comunismo, e o do Ocidente, Capitalismo. Os unicórnios representariam os socialistas totalitários, cujo monopartidarismo, com uma elite política, é a tónica dominante, e os bicórnios seriam os estados pluripartidários, defensores da liberdade. Em Cabo Verde, aqueles que seguem o pluripartidarismo, os bicórnios portanto, vivem marginalizados sob uma quantidade enorme de restrições e proibições. Os infrachifrudos, constituiriam, então, os não alinhados. Se bem que essa passagem sirva mais, ao que me parece, à semelhança de outros do género, para demonstrar, também, a desinformação e o baixo nível cultural dos senhores detentores do poder.
Já a história da mocinha do gorro azul, que, afinal, não passa de um sonho, é mais uma forma de manifestar a ansiedade em inverter o status quo, em que os mandões caracterizados pelo lobo lobante subjugam sempre os inocentes.
Providenciando, então, uma pequena catálise, teremos, em resumo, o seguinte axioma:
Um funcionário do Estado, digamos, devido à sua designação de escriba (“um jornalista”?), na sequência de uma reunião para uma conversa relativa à proposta do Ministro de Educação sobre a reforma ortográfica, em que as discussões, de nível medíocre, desviaram-se, completamente, do objecto do encontro para assuntos triviais, proferiu umas merdas em protesto às inúmeras sem-vergonhices verificadas e acaba por ser suspenso das suas actividades profissionais, sendo-lhe caçada a carta. Encontrando-se no desemprego e sem possibilidade de ingressar na Função Pública, recorre a diversas artimanhas para sobreviver, vivendo de expedientes diversos e calotes, até ser preso. Comportando-se maravilhosamente na prisão, acaba por cair nas graças dos poderosos da Nação, devido à sua sabedoria e consegue, com a ajuda do exterior, tomar o poder e dirigir a Nação (possível leitura).
Poemas
de Arménio Vieira
Ao lermos Poemas – 1971-1979, de Arménio Vieira, somos imediatamente cativados pelo seu tom intimista, confessional e coloquial, mas, na verdade, o que mais ressalta e nos impressiona é o seu jeito peculiar de humor, a raiar um pouco o sarcástico, a par de uma velada ironia (às vezes auto-ironia). Utiliza o humor com particular mestria, o que lhe confere um pendor encantatório e encantador de dizer, que cativa o leitor.
“Meu pai diz para os amigos
(gente oca e rasteira, cabecinhas de alfinete):
– Tenho pena do meu filho: ele é doido, é poeta.
Mas se um touro me ataca ou um bruto de matraca, meu pai
dá um pulo, mais lesto que uma pulga, e torce os cornos ao
bovino”
Afirma que o pai diz ser ele louco porque poeta, embora no fundo não pense mesmo assim. O poema transparece como se dialogasse.
Para falar da escrita de Arménio Vieira, terei de referir, em primeiro lugar, duas questões que me parecem fundamentais no seu ideário (ou imaginário) poético:
A priori, a simplicidade que se consubstancia na forma fluída e fruida – com frases vigorosas e sugestivas, cheias de ritmo e cadência – como se dirige ao leitor.
Em segundo lugar, a contradição a que esta primeira impressão conduz, devido à ambiguidade ou dialéctica (movimento de conceitos e interpretações) que uma leitura aprofundada, com objectivo de aferências, revela:
“Tu nunca viste um homem
Subitamente triste
ao descobrir um tesouro ou paraíso
e um gume encostado ao coração
cuspindo riso pela boca
– Entretanto ensino-te caminhos
que não passam pela porta de ninguém
e dizes que sou louco”.
Pode reparar-se que neste poema as palavras são simples e as construções frásicas lineares, o que torna o texto de leitura fácil e aprazível. Entretanto, permanece uma certa dificuldade interpretativa resultante das conotações que as palavras ganham consoante o contexto em que se inserem, devido a jogos de conceitos. As duas premissas atrás referidas tornam-se-me imprescindíveis para uma aproximação efectiva ou, se se quiser, uma hermenêutica capaz desta obra, porquanto se manifesta, à semelhança dos arquétipos modernistas, de uma complexidade lúdica aliciante, dado que o seu discurso se processa a dois níveis – o óbvio e o oculto –, num jogo de palavras e de conceitos (o que faz os referentes ganharem conotações dúplices em termos de significação). De atentar no tom alegórico e fabulário da maioria dos poemas (1). Também a natureza de discurso que pratica, ao jeito do surrealismo, eivado de humor, de semi-automatismo, e de referências várias da área sexual e erótica (2).
(1) – “Numa lamela de sol
uma larva de fome
na fome da hora
uma hora de bicho
Na fome da hora
uma larva estremece
na hora de bicho
um verme apodrece
(homem ou larva
bicho ou gente?)
Nos olhos
de certos cães
por vezes
aguarelas de ternura
quase humana
(até dói
não falarem)
Nos olhos
de certos homens
tanta vez
um retrato
a plena luz
de cão perfeito
e feroz
(até espanta
não ladrarem)
(2) – Enquanto eu te beijo
musa de axilas perfumadas
Vénus purificada em banho de espuma
Enquanto afago o teu umbigo
terezinha bonitinha borboleta
ontem puta agora diva
Enquanto nos amamos
suave deusa minha
olvidando o dia certo
que temos para a morte
Casanova em pijama nos sorri do alto
e o marquês-de-sade
feito santo de alcova
abençoa a nossa união”
Os poemas referem-se a homens e animais num jogo de transmutações psico-fisiológicas. O homem é um animal, do mesmo passo que o animal é um homem. O discurso parece discorrer simplesmente como um barco ao sabor das ondas, sem esforço, e fala de beijos, de sexo, de puta. É tanto mais verdade ser esse o seu ideário poético, quanto alguns dos seus poemas dedicados à estética poemática o confirmam – o que acontece com a “Arte Poética” ao definir-se a si mesma, afirmando que “É PELA METAFORIZAÇÃO DO DISCURSO/QUE SE SALVA O PENSAMENTO” e com o poema “Prefácio a um livro futuro” (2), que revela a sua posição quanto ao seu fazer poético – “Sobre os meus poemas transitivos/tracei uma grande cruz vermelha”. Assim sendo, de modo algum ele é apologista do poema panfletário ou de intervenção social unicamente, que se diz “utilitário”, antes pelo contrário, ele é o vate do poema ambíguo, metafórico, e do escrever com todo o ser, de forma a criar o que Roland Barthes define como “fenda do prazer”, que emerge do jogo de fechamento/abertura. Por exemplo, em “TUDO É FINITO”, podemos pressentir a mudança em destaque, a denúncia do caos, o descrédito: a incerteza dos nossos dias contrapondo-se ao passado. Tudo tem um fim, diz o poema, até os mitos acabam por degenerar, por perder o brilho e o valor anterior:
“Pronto!
A Vénus de Milo está gorda
e fez cesariana
Apolo tem rugas
e usa lunetas
(ou)
Cupido cresceu
e sofre de hérnia
Acabou
Enquanto um homem afoga o dia
em álcool e fantasia
há um outro que chora
– face de velho encostada
à pedra gasta dos epitáfios”
Não há dúvida que a palavra é, para Arménio Vieira, boomerang, moeda, espada. Serve-se dela não para nomear as coisas, mas sim para as sugerir, tampouco para as pronunciar, antes para as prenunciar. Utiliza as palavras tanto como flor, que serve para o amor como para a morte, seduzindo-as a seu bel-prazer e ao seu serviço.
Sente-se um estilo pessoalíssimo, inovador e criativo, ao mesmo tempo que marcado por intertextos às instâncias do conteúdo, o que, aliás, ele mesmo revela em “Posfácio” – “Num retomar constante e abandono/os poemas podem ser assim ou de outro modo/até ao infinito. Só que estes (não importa o sangue ou seiva que a outros se foi pedir)/são bem as marcas que o estar-no-mundo e a dor/feriram numa certa pedra” (o mesmo acontecendo em “Ser Poeta”).
GLOSA AO POEMA DE PASSAREM AVES
À Memória de Jorge Sena
“Em bando passam aves
e eu voando vou com elas
Mas assim que aterro e quebro as asas
Recolho-me à sombra, que não das aves
Das aves não
Mas da memória que fica delas
Passam lestas chilreando leves
E minh’alma, ninfa triste em seu novelo,
Fica só daqui a vê-lo
O bando não
Mas o que fica de passarem aves”
A forma de escrever e a liberdade na maneira de dizer são peculiares, não obstante fazerem lembrar-me um pouco o poeta português Alexandre O’Neill. Repare-se, por exemplo, na analogia que o poema “Homens-Cães (e vice-versa)” faz com “O macaco”, ambos jogando com a figura de animais para referirem o homem.
“Nunca se sabe
até que ponto
um macaco
pode chegar
na ânsia de
nos imitar.
Dizem
alguns autores
ser o macaco
difícil de apanhar
– mas não.
Em qualquer
mundana
Reunião
num ombro
numa frase
num olhar
no jeito
«humanista»
de falar
aí temos
o macaco
a trabalhar
Procurando
aproveitar
a confusão
Pessoalmente
sou de opinião
que o macaco
é fácil de caçar
até à mão
(A. O’Neill)
A linguagem de Arménio Vieira é, a um tempo, profunda e figurada. O seu vigor metafórico, com personificações metonímicas, antíteses e sinestesias convincentes, é deveras impressionante, não tanto pelo uso em si, mas pelo rigoroso equilíbrio conseguido, que cria uma forte empatia no leitor, projectando os sentimentos, as emoções e a harmonia das coisas num campo lúdico e inesperado, cheio de novidades. Chega ao absurdo, ao paradoxo, a forma de contraste que utiliza, mas dentro de uma certa lógica, pois são jogos antitéticos, a modos do quiasmo, de fácil apreensão. Inverte todos os papéis.
“Há uma torneira sempre a dar horas
Há um relógio a pingar no lavabo
Há um candelabro que morde na isca
Há um descalabro de peixe no tecto
Há um boticário pronto para a guerra
Há um soldado vendendo remédios
Há um veneno (tão mau) que não mata
Há um antídoto para o suicídio de um poeta
Senhor, Senhor, que digo eu (?)
que ando vestido pelo avesso
e furto chapéu e roubo sapatos
e sigo descalço e vou descoberto”
“Caviar, Champanhe & Fantasia” é também um símile apurado desse paradoxo. A ironia, por seu lado, atinge o seu ponto máximo, a par de um sarcasmo impregnado de denúncia, angústia e frustração – “pelo que ficou dito/e pelo que não/talvez fosse oportuno morrer aqui e agora/ em vez de comemorar minhas três décadas de vida”. A escrita é, pois, uma necessidade de estabelecermos uma ponte entre o nosso interior e a realidade que nos ultrapassa nos seus pormenores insignificantes e desconexos (às vezes). As palavras são sons povoados de sombras que se interpenetram e se transmutam.
A escrita, enfim, é uma necessidade humana de utilizar a linguagem como veículo de comunicação e de revelação da actividade humana, da existência, mas de uma forma mais emblemática e mais problemática, como a própria vida que se vive todos os dias e não é reconhecida tão naturalmente no nosso interior e no nosso consciente – “um poeta e o seu canto:/Harpa eólia, sons de louco”. Uma filosofia mística, prenhe de grandes contradições humanas e da questão essencial do existir, transparece, nitidamente, no delinear poético do poeta. Ele capta o mundo pelo lado inesperado e quase não consciente do homem, como se percepcionasse tudo numa outra dimensão. Utiliza o fantástico à sua maneira, de uma forma um tanto ou quanto enigmática – “Sísifo”, “Touro Onírico”, “Canto Final” “Ou Agonia Duma Noite Infecunda”, “Também os Deuses”, “Parábola”, “Glosa Ao Poema De Passarem Aves”.
“Um dia transportei minha atenção lá onde o tempo
devia ser uma árvore segura no solo e na rocha
Mas o que vi foi uma águia voando com uma raiz na boca”
Há um certo enigma na expressão “o tempo devia ser uma árvore”! Utiliza conceitos ou objectos sem ligação aparente, em termos lógicos de interpenetração, para sugerir realidades completamente diferentes – tempo por árvore, tempo por águia. O fantástico vinga-se na mística que os signos nomeados adquirem, sugerindo, no entanto, a incerteza, a precaridade, a virtualidade e relatividade das coisas.
Em geral, o tema dos seus poemas é o homem na sua relação social e humana: O drama da vida cheio de conflitos e problemas de ordem vária; a psicologia humana e os grandes males sociais são os seus temas predilectos e característicos – “Bicho gente”, “Lisboa – 1971”, “In the south”, “Um homem não chora”, “Nunca dobres a espinha”, “Os Mortos que somos”:
“No quarto dezoito da rua treze
Cortaram o pescoço ao bebé da mamã.
Ao paizinho foi só isto: arrancaram-lhe os testículos
e meteram uma flor na boca do pénis.
Quando chegou a vez da mamã
Já nem deu para mais: morreu de susto.
Depois foi só chegar fogo à mecha e deitar a fugir
Há um incêndio dos diabos e vens apagá-lo com lágrimas!
– grita um bombeiro à menina que chegou do passeio
Nisto a criada desmaia e o cão sai a vadiar.
O jardineiro, bom moço, promete flores para um lindo
enterro.
É decretado estado de sítio
Conluio de negros e anarquistas
Entretanto bebe-se whisky e fuma-se charuto”.
A sua tendência para pintar fortemente, embora de uma forma irónica e sarcástica, a tragédia, a desgraça e a miséria humana é marcante. Sabe, muito bem, descrever o dilaceramento e o abismo que se forma no interior das pessoas.
Revela uma certa obsessão pela escuridão, pela agonia, pela solidão, pelo pesadelo e pela morte inevitável. O seu universo simbólico é bastante eloquente – o expressionismo e o grotesco – “Didáctica Inconseguida”, “Narciso e a estátua de Vénus”, “Sísifo”, “Touro Onírico”, “Canto Final” ou “Agonia Duma Noite Infecunda”.
“Narciso – em vez de dois –
tem quatro olhos
mas todos virados para si (…)
Deslizando por alcovas de silêncio
atinjo sempre
a face lisa dos espelhos (…)
Sentei-me e escutei…
mesmo assim não gostei (…)
……………………………………….
Peguei num monte de violinos
e quebrei-os até à última corda (…)”
“O touro avança colado aos passos lentos
de quem se perde numa floresta densa (…)
De repente a vertigem
a goela do abismo ao fundo
a sensação da morte…
(…) a garganta com as cordas dilaceradas
e uma lâmina ácida e pontiaguda enterrada ao
nível da carótida”
Pode sentir-se o vazio, a solidão, a escuridão em “Deslizando por alcovas do silêncio/atinjo sempre/ a face lisa dos espelhos” – são vários os desencontros, as frustrações.
O dilaceramento interior e o grotesco são dados pela expressão – “a goela do abismo ao fundo, a sensação da morte”.
Creio, ainda, que é de pôr a tónica na psicose da morte e do amor desencontrado que trespassa esta obra.
O efémero das coisas, a morte inevitável como perseguição, é vista como coabitante da vida. Afinal, somos mortos-vivos e vivemos para morrer.
Pensamos nos deuses e na eternidade porque vivemos. Mas, no fundo, sabemos que, ao morrer, os deuses também morrerão, porque não há nada mais para além da morte, senão a morte:
“Arre de vida e sua codificação de gestos!
O tempo que perdemos atrás dos mortos
Sem nunca pensarmos nos mortos que somos”
“Ciosos de eternidade
é pela memória dada ou consentida
que os deuses trepam aos altos sóis
e aí reinam (ou repousam)
em côncavos tronos envolvidos
de silêncio, ócio e tédio
Porém se um dia ressuscitarmos
(que não da morte, porém do sono)
também eles estarão mortos”
O amor desencontrado assume as proporções de uma tragédia e é retratado sempre de uma forma violenta e irreversível, como algo breve e transitivo – efémero.
“E então procurei
a donzela mais rara
e trouxe-a comigo e sentei-a nos meus joelhos
e vi como eram tristes os seus olhos
Tinha uma boca
como nunca vi outra
mas os seus lábios eram frios
e não pude aquecê-los
– nem com taças de vinho
nem com versos de amor
……………………………………..
“Encostei-me a uma janela
e vi a moça dos olhos tristes
fugindo como gazela pela noite”
“Porquê não amar
minha própria imagem reflectida
– Já que tu (há tanto tempo)
és a estátua deste inverno
com tuas pálpebras imóveis
e duas órbitas vazias
(…) Porém, quando olhamos um para o outro
e nossas mãos quisemos de novo apertar
havia aquele imenso rio a separar-nos e um barco lentamente
a afundar-se”.
Galopando qual cavalo rebelde sobre o dorso dúplice das palavras, a escrita de Arménio Vieira atinge o ponto de ebulição ao revelar-se como o avatar da sátira e da denúncia – metamorfoseando as situações de uma realidade num “rictus” jocoso e mordaz.
Contestatariamente, retrata a situação da dependência, da colonização e a neurose daí advinda, o que faz com que as pessoas, cheias de medo, se sujeitem a determinadas barbaridades, até à estupidez extrema:
“Isto é que fazem de nós
quando nos inquirem:
– estais vivos
E em nós
as galinhas respondem:
– dormimos”
Ao jeito do espectro solar, Arménio Vieira desdobra-se em miríades de cores no seu itinerário irreverente e satírico, atingindo todas as faixas sociais, em “flashes” significativos.
Em tom narrativo como pano de fundo, as denúncias processam-se em jeito de fábula, com a realidade transfigurando-se em alegorias várias, na esteira de George Orwell e o seu Animals Farm. As pessoas transmutam-se em animais ou os animais ganham a racionalidade do homem e agem como tal. E a pintura do lado boçal da sociedade até à caricatura “Anunciaram os Jornais”, “Fábula de Esopo”.
A radiografia social vai do marginal que leva vida desregrada e miserável, dedicando-se à bebedeira e tornando-se num morto-vivo, e o consequente aviltamento a que é votado – “Toti Cadabra” – até à elite presunçosa, petulante e prepotente – “Homens Cães (e vice-versa)”, “Anunciaram os Jornais”, “Fábula de Esopo”, “Tempo de Bichos”, “Lengalenga Contra Alguns Insectos/Para a Salvação de Todos os Poetas”, “Homenagem em Forma de Vôo e de Mijo ao Conde Zeppelin”.
“Quem me dera isso a mim!
Como um conde ou barão
Subir assim, desse jeito
(não de avião mas de balão)
e lá no alto, rente ao tecto
fazer chichi na presunção
de tantas bestas juntas
Santos beatos e jumentos.”
Atingindo o ponto de saturação, no auge da sátira, a denúncia transforma-se em revolta. Há rejeição da submissão e da hipocrisia e o assumir de uma posição contestatária até às suas consequências últimas, por vias de facto.
Há nojentos gestos actos
Há palavras que eu detesto
Rezar gemer flectir
ou então abrir a boca
(como um tanso, feito merda):
“ora sim, meu senhor”
Ora bolas é que é!
Ora bolas! Ora chiça! Ora poça!
Isso tudo mais o punho
bem na cara do safado
Cinco dedos cerradíssimos:
“ora toma, seu sacana”.
Afinando pelo mesmo diapasão deste poema, encontramos a “Invenção do Crime”, que faz intertexto formal e analógico com a “Invenção do Amor”, de Daniel Filipe.
“Acabaram-se os indultos – declara-se do alto.
É declarado estado de sítio
Entretanto bebe-se whisky e fuma-se charuto.
Quem afinal são os autores do crime?
Cem dólares a quem acertar
Um decreto põe fim à questão.
“NÃO HOUVE CRIME, ACABOU!”
Este poema possui o mesmo jeito de dizer, o mesmo ritmo, a mesma estrutura, a mesma essência da invenção do amor: um, fala da necessidade de se inventar um amor gasto e rotineiro que se torna desamor como justificação do dar-se ao prazer da desinibição, do à-vontade da nova era, e o outro põe a questão do crime que, com os novos-ricos, tende a tornar-se “habitué”, impunemente.
Convém, contudo, realçar o aspecto que considero mais importante nesta obra – o humanismo, o homem no centro de uma visão do mundo, e a questão crucial do existir: quem somos, afinal? Que fazemos aqui?
Entre o sagrado e o profano, sobressai o “canto do crepúsculo”. Os mitos, os deuses e a religião.
Por isso, teremos de remontar aos sécs. X a VI A.C. – e reviver os ares micénicos com a respiração pendente das epopeias homéricas – a Ilíada e a Odisseia.
Deparamos então com Delfos, o “umbigo do mundo”, a dominar o alto das Rochas Fédricas. É o oráculo que, através do domínio do sobrenatural, da magia e da adivinhação, faz acontecer o milagre político e económico. Todos são atraídos para esse local onde o Zodíaco fala mais alto que tudo. As pitonisas ou pítias estão no centro das atenções, donde é Apolo soberano.
É, pois, nesta senda que encontramos o canto do crepúsculo a duvidar e a contestar mesmo a veracidade do poder de adivinhação e os preconceitos que o envolvem. “Recordemos o vaticínio, augúrios prometidos e não cumpridos ou seria antes o ruído vão, o sopro vil, o flatus vocis!” Hoje, mais do que nunca, por via das grandes transformações operadas no mundo e do surgimento de novos conceitos e princípios, a visão do universo, bem assim como das crenças, é seriamente abalada – “Porém, quem pode no meio deste caos de signos/garantir-nos a mínima das verdades, jurar sobre a cruz,/Ou testemunhar que Zeus é ainda deus entre os deuses?” Acabaram-se as verdades absolutas e transcendemos essa época nebulosa dos oráculos e das credulidades cegas. Entretanto, permanecemos sempre na incerteza de tudo, com todos esses enigmas por decifrar:
– “Eis que os papiros velhos, os livros negros,/as escrituras sacras só falam do nosso equívoco/Assim, o logro e a dúvida encontram tempo largo para nos confundirem,/(…) seres de ubiquidade, assim nos consumimos/entre Édipo e a Esfinge”. Do mesmo passo, extraímos a narrativa bíblica como axioma para a introdução da mesma questão relativa à verdade, actualmente. Mas só que aqui já os dados mudam, pelo menos uma coisa é segura – a morte, embora nada mais seja exacto para além dela – “Em verdade os muros de Jerusalém ainda não nos ensinaram/a reprimir as lágrimas, Quem refutaria/sermos feitos para a morte, o denso olvido, a consumação?/(…) Porém quem nos dirá ao certo que por havermos transgredido,/que deuses nos chamarão à pedra?”. A fraqueza do homem é posta a nu em toda a sua dimensão, bem como a emoção, o amor, a dor, para além da crueldade, do aviltamento, do vitupério. “Em Sião há lágrimas. De que vale ser-se eleito do Senhor?/David é Rei e forte, porém chora./( … ) E quando ferimos ou matamos/é para a seguir nos rendermos ao susto e ao perdão,/tal o gozo da clemência ou da autocomplacência,/ou para ganharmos tempo e voltarmos a transgredir”.
Absalão insurgiu-se contra o Pai – Rei David –, mas este não queria matá-lo pelo amor que lhe tinha, e quando soube da sua morte, chorou, malgrado o sentir do povo que não aprovava tal procedimento.
O Rei David, para além de tudo, é humano, “Demasiado humano”. Também Caim, que praticou o fratricídio, ou o herético Herodes, que mandou executar todos os recém-nascidos, na expectativa de matar Jesus. Todos pecaram porque cometeram erros, porque são humanos (errare humanum est) e não sabiam o que faziam, ou pelo menos confiavam no perdão, no arrependimento – “Caim cumpre a sua sina/entre o deserto e o paraíso/e tudo se passa tal se Herodes se erguesse entre os mortos e beijasse a cabeça de João Baptista/e jurasse perante o templo e os fariseus/estar maduro para o olvido” .
A finalizar, o poema “Aliteração da Pedra-Vento”, que delineia o retrato da paisagem cabo-verdiana e da vida dura feita de tanto lutar, de tanto resistir contra a seca, contra o vento, contra a adversidade, enfim.
É a captação sublime de uma realidade: a imagem da terra acolhida profundamente até à vida que nela acontece. A culturização dos seus versos, a inventariação, através deles, da paisagem é bastante esmerada, ressaltando a aliança feliz da instância fónica e semântica num mesmo diapasão qualitativo. Há certo concretismo.
“Vento-Pedra
Pedra-Vento
Penedo pedra rochedo rocha
ardente vento revolta venta
seco barro terra seca
berra cabra resiste gente
aguenta urra luta agarra
agreste sílaba sibila silva,
Pedra-Vento
Vento-Pedra
merda medra range ruge”
A complementar, parte de uma leitura alheia.
“Torna-se interessante verificar-se que o sujeito dos Poemas”, quase sempre antropomorfizado, funciona, em simultâneo, como destinador e destinatário da mensagem e extrema-se ao longo dos textos em dois posicionamentos
Bicho-gente
Morto Circula
Monótono no
1 – Homem Repetitivo e circular mundo
Transitório do
Agónico “PARECER”
Social
Sonhante
Simbólico Circula
Fantástico no
2 – HOMEM Utópico mundo
Super-ego do
Social e anti-social “SER
assumido
São exemplos disso, porque mais significativos, de entre outros, os sujeitos dos Poemas seguintes: «Isto é que fazem de nós», «Toti Cadabra», «Bicho-Gente».
E isto faz-me lembrar a teoria platónica sobre a existência, que diz haver dois mundos: o do sensível e o do inteligível, ou seja, o mundo do parecer e do ser. O exemplo de um homem numa caverna a ver sombras na parede é significativo (Alegoria da caverna).