O DIADEMA DO REI
por Danny Spínola
A literatura cabo-verdiana dos últimos tempos, desde a independência nacional, sofreu uma transformação substancial.
Abrindo-se, mais ainda, ao mundo; impregnando-se de novos valores e novas percepções da vida e das coisas, apreendendo as novas tecnologias e os novos impulsos hodiernos, por um lado; e, por outro, acompanhando o dia-a-dia mundial, através das novas tecnologias, que tornam o planeta (como se sói dizer agora) uma aldeia global, e sofrendo, também, as consequências dos inúmeros acontecimentos planetários, tais como os conflitos vários, as escaladas das drogas, os fenómenos de aculturação vária e as ameaças terroristas, ecológicas, nucleares epidémicas, os escritores cabo-verdianos contemporâneos acabaram, também, por se ressentir desse novo clima de vida e vivência, traduzindo-o nas suas escritas uma linguagem e roupagem, tanto estética como temática, diferente da escrita que lhes antecede e dos Bardos da literatura cabo-verdiana.
Houve, sim, um avatar, uma revolução e uma inovação na forma e na maneira de escrever, na percepção da nova realidade cabo-verdiana e no modo do retratar. E essa revolução se verifica tanto no aspecto literário em si, nas novas imagens e metáforas, como no que concerne ao conteúdo e abordagem das novas temáticas, que se primam por uma certa originalidade e criatividade, em que a subjectividade e uma certa utopia se manifestam com primor e evidência.
Neste momento, pode-se falar de uma plêiade de escritores cabo-verdianos que se enveredaram por rumos tão diferentes dos seus antecessores e que atingiram uma grande maturidade estético-literária.
O grande mérito dessa nova geração reside na sua heterogeneidade e peculiaridade. Pode-se, até, afirmar que os escritores dessa nova geração primam-se pela diversidade de estilo e de abordagem temática, de tal forma que se torna quase impossível uma filiação ou uma inclusão, peremptória e espartilhada, em escolas literárias e à volta de dogmáticos mentores.
A liberdade de escrita, do que se escreve e de como se escreve, em Cabo Verde, é tão grande, que se pode encontrar autores da mesma geração com obras tão individuais e originais, tão diversas e diversificadas, tão universais, quanto telúricas, e com ressonâncias universalistas múltiplas, a se conviverem num clima de criação e de publicação deveras impressionante.
É preciso ressaltar aqui que, nesses últimos tempos, foram publicadas obras, tanto no domínio da prosa, como da poesia, e do ensaio, inclusive, com um grande nível estético, de inquestionável qualidade, imprescindíveis a uma boa literatura, como a criatividade, a originalidade e a artisticidade que as tornam obras de referência em qualquer latitude, e que valorizam o património artístico-cultural e literário cabo-verdiano.
É, pois, nesse âmbito, que destacamos O Diadema do Rei, de Domingos Landim de Barros, que tem publicado com o pseudónimo de Novissíl de Fasejo, e que faz a sua estreia agora com um punhado de poemas que se pode circunscrever na circum-navegação da poesia cabo-verdiana dita moderna e universalista.
Já no título se denota esse universo simbólico e fabulário do livro, que pode ser interpretado como a proposta da gesta e percursos de um herói, de um rei, que, neste caso pode ser o próprio sujeito poético, ou o arquipélago que se coroa com a maravilhosa aventura da escrita e da criação. Sendo certo, no entanto, que, numa perspectiva semiótica, esse rei será o próprio autor, encarnado no sujeito poético, que se regozija com o êxtase da escrita, sentindo-se um felizardo do criador que lhe proporcionou a prerrogativa da criação.
Landim, com essa sua obra, demonstra que conhece bem o seu tempo e a sua gente, e que possui um apurado sentido, omnisciente, dos meandros do interior humano, ao captar, de forma sensível e convincente, os conflitos interiores advindos das diversas situações adversas do homem cabo-verdiano e do próprio sujeito poético – personagem de perfil psicológico denso e modelado, complexo.
A geografia do lugar, o sentimento de pertença a um lugar real, ao mesmo tempo ideal, idílico, constituem o leitmotiv desta geometria poética, que discorre num tom coloquial entre o filosófico e o metafísico, com indagações subtis e veementes sobre a vida e a sua essência; e os desígnios divinos, mas também sobre uma nação e o seu povo e sua construção, numa radiografia de encontros e desencontros, de partidas e chegadas, despedidas e louvações. Nos seus poemas, surpreendemos a preocupação com as diversas fácies da Tellus, da terra – mãe e madrasta, da polis e dos horizontes vários das achadas e cutelos das ilhas e seu modus vivendi, e rezendi para o pão-nosso-de-cada-dia.
“Minha pátria cavalga devagar
E sobre a praia de incerteza paira
Eu vou aconchegado no lugar
Que calhar desocupado
Poupado e renegado pelos outros
Como se a mim somente sobra
Toda a borra da disputa e da desforra
O chão azedo em que se cospe
E toda a gente encolhe o ombro (…)
(…) Nha terra é povo que urde
Na urbe a gente não cabe
Meu povo é servo que vai
‘nha terra é gente que vem (…)”
Pelos interstícios das euforias e disforias, dos eufemismos e disfemismos, do fluir d’O Diadema do Rei, sobressai o Bardo Lírico-Romântico, com o seu desânimo e lamento, a sua penitência e resignação, em simbiose com reminiscentes ecos de um Sá de Miranda, de um António Ferreira e do grande Camões, de uma forma comedida e sábia, entre canções, odes e sonetos, que lhe confere um alto valor estético-lietrário.
Não obstante, há espaço para uma trama outra, mais lúdica e aliciante, mais freudiana e mística, entre a sensualidade platónica e o ardor epicurista, povoados de Dirceus e Marilias, i.e., de Adónis e Crisbelas, ninfas e Vénus fatais.
“Crisbela convém serena
De longe traz a beldade
Contém pele e tez morena
Numa concha sem maldade (…)
Com ela mora Janeiro
Que zás e cai e depois sai
Como de jasmim o cheiro,
Que p’ra outro outeiro vai (…)”
A grande virtude d’0 Diadema do Rei advém da sua eloquência verbal e poética, palpável na sua forma peculiar de versejar e vibrar com a vida e o mundo, como diria o poeta: de viver a vida, vivendo-a através dos versos e das suas iluminações. Já dizia Holderlin que “ aquilo que permanece, os poetas o fundam”.
O Diadema do Rei é um livro de poemas caracterizado por uma certa literariedade, na praxis metafórica, pelo uso, embora comedido, de algumas transgressões; pela sua subjectividade e ambiguidade, emblemáticas, emplumadas por um frescor linguístico, cativante, ao aliar uma certa simplicidade e aprumo estilístico, na sua dissertação poética, com um certo vigor e rigor metafórico, fluido, que nos convida à leitura toda, e que pode ser intuída e entendida, através dos versos lapidares de um grande poeta “O que era apenas alma, Volve-se corpo”
O universo poético d’O Diadema do Rei é marcado pela sua pureza e grandeza, devido à correlação do seu Cosmos temático com o seu corpus e húmus poéticos, que nos leva a imaginarmos a mover no mundo de um caçador fantástico – pintor de esmerada paleta, que procura captar os ângulos e as faces necessárias, imprescindíveis da vida, para nos oferecer.
O universo literário que cria, ou recria, é portador do estigma da empatia que nos subjuga e cativa na sua teia de confissões e circunlóquios, saborosamente coloquiais.
Mas o que o singulariza e distingue é, sobretudo, o seu exercício oficinal de erigir um artifício poético, de forma eminentemente clássica, com uma projecção moderna, ao apropriar-se dos cânones da poesia fixa, com métricas, rimas, inversões e reiterações, próprias de uma geografia de antanho, reinscrevendo-as e reintegrando-as num mundo eminentemente novo, de respiração nova, com um halo de inovação e reinvenção, pelo seu efeito inusitado, e um quê de estranhamento. É a reinvenção de um mito poético num contexto de utopia ao utilizar recursos de uma cultura do passado, já cristalizados, numa “envolvência” e ambiente actuais, contemporâneos.
É claro que muito ficou por dizer deste livro, pela sua densidade poética, pela sua profundidade perceptiva e interventora e abrangência temática e paradigmática, mas ficamos por aqui, deixando esse trabalho de ourives para outras instâncias, não resistindo, contudo, a um comentário final, de primordial interesse, talvez, parafraseando uns versos de Shelley: ao lermos O Diadema do Rei e os seus versos de ressonância clássica, com melopeia de sabor moderno, ficamos com vontade de “ser uma lira como a floresta o é”.
Danny Spínola