Ao reler recentemente o livro Finasons di Nha Nasia Gomi, recolha, organização, compilação e comentário de TV da Silva, Tomé Varela da Silva, veio-me à mente a ideia de que a melodia e a profundidade das composições poéticas do Finason, no fundo, constituem uma forma de cantar e expressar próximas da dos rappers, e, desde logo, uma forma de cantar o Rap em Cabo Verde, muito anterior ao seu aparecimento, importado com a massificação dos Mídias, já que o “finason” nasceu, praticamente, com a formação da nação cabo-verdiana.
Ocorreu-me, também, que os músicos atuais, que se dedicam a cultivar esta modalidade artística, em voga, em Cabo Verde, neste momento, poderiam ir beber dessa manifestação artística popular cabo-verdiana para criarem uma música muito nossa, genuína, que pudesse, sim, contagiar os outros e ter impacto além-fronteiras, em vez de se trazer o que não é nosso e que custa muito ser representativo da cultura cabo-verdiana. Impõe-se, pois, uma apreciação séria do livro para se ter a ideia da sua riqueza e importância, e da necessidade que há de se dinamizar ainda mais a recolha de tradições orais, tendo em conta a quantidade enorme e a qualidade das tradições orais cabo-verdianas.
Não há dúvida alguma que o panorama cultural cabo-verdiano foi tridimensionalmente enriquecido com a edição deste livro de “Finasons di Nha Nasia Gomi”, recolha de TV da Silva.
De facto, num rasgo de profundo compromisso com o desenvolvimento e a promoção dos mais caros e lídimos anseios deste povo de nome verde e tenaz, na esperança e na decisão de ultrapassar todas as barreiras e dificuldades que se lhe impõe, este livro veio: aumentar o património histórico-documental do nosso país, ao reunir nas suas páginas, recolhas inéditas da poesia popular cabo-verdiana, cantada ou musicada (neste caso, finasons, especialidade santiaguense, representativa nas tradições orais): veio reforçar ou documentar, ainda mais, o papel do crioulo, no contexto da implementação da língua materna como língua nacional; veio emprestar novas perspetivas à literatura nacional, para além de constituir uma densa e aliciante fonte de conhecimento dos hábitos, costumes e filosofias do povo cabo-verdiano.
O livro, que muito bem poderia ter uma melhor apresentação gráfica, está estruturado da seguinte forma: para além das dedicatórias, das considerações sobre o alfabeto da língua em que é escrito, e de algumas ilustrações fotográficas a preto-e-branco de Nha Nasia e sua família, ele divide-se em quatro capítulos principais — uma biografia de Nha Nasia; finasons — I, com notas preliminares temáticas, e textos e notas de, também, quatro pontos, à semelhança do finason — I; e uma conclusão, a respeito da disposição gráfica dos temas.
É de se salientar as considerações que o autor/compilador faz a respeito do porquê do livro ser em crioulo e na variante santiaguense, o qual explica que elas se baseiam na incontestável realidade de o crioulo ser a nossa língua materna, no primeiro caso, e no importante facto, no segundo caso, de os finasons e de a autora dos finasons recolhidos, serem naturais e puros filhos da ilha de Santiago.
Um bem-vindo esclarecimento sobre o finason também faz parte do brinde que o autor nos oferece para apresentar o livro, segundo o qual, e parafraseando-o, finason é uma das várias músicas cabo-verdianas compostas por uma poesia cantada, por uma “kantadera”, ao ritmo da “Txabeta” (ritmo musical marcado com as mãos ou batucadas).
Embora muito próximo do batuku, há pontos distintos que os diferenciam. Por exemplo, enquanto o finason é marcado pela melodia, o batuque é pelo ritmo e, enquanto nas letras do finason, em geral, não existem coros, as do batuque estão cheias de coros, e, enquanto a “Txabeta” de finason, é, geralmente, orquestrada pelo bater de palmas, o do batuku é executado, sobretudo, com batidas rítmicas das palmas das mãos sobre um chumaço de pano colocado entre as pernas; e, finalmente, é de se destacar o finason, quanto à letra, como uma verdadeira literatura oral, poeticamente organizada, onde se transparece, ou donde se pode conhecer toda a panorâmica sociocultural de um determinado meio da sociedade.
Da biografia de Nha Nasia, ressaltamos algumas passagens deveras interessantes: Nha Nasia Gomi, de seu nome completo Maria Inácia Gomes Correia, nasceu na localidade de Mato Dentu, zona de Principal, Freguesia de São Miguel, da Ilha de Santiago, a 18 de Julho de 1925.
É a décima filha dos doze filhos de Cândido Correia da Costa e Justina Gomes Pereira. Ela nunca foi à escola, e, à exceção do contacto que teve com a Igreja Católica, ela não teve praticamente qualquer relação com os meios clássicos de transmissão do saber. Entretanto, o finason, uma poesia oral, impregnada de sabedoria, da sabedoria colhida da experiência do Mundo e da vida cheia de dificuldades, que no dia a dia enfrentava, pois, nem ela nem o marido, Paulino de Oliveira Correia (Polinu, como ela o chamava) nunca tiveram nenhuma propriedade, para além das suas casas e das suas próprias cabeças.
A primeira vez que Nha Nasia entrou no “tereru”, ela já estava segura da capacidade que tinha no “finason”, conta ela; Fora substituir uma grande ‘‘finadera”, que, no momento jantava. E quando esta voltou, desprezou-a (baxu finason), e, então, ela aceitou o desafio, pois que, quando se entra no “tereru”, “tereru”, não é de ninguém, quanto mais não seja, porque ela tinha fresca na memória o conselho da sua mãe, que dizia sempre “Ma mininu fémia ki entra tereru, ó sala di badju, di noti, só debi sai di la palmanhan, pa ka da algun mal intensionadu okazion”, e, então, naquela noite, ela cantou até ao amanhecer. Nha Nasia iniciou-se no finason bastante jovem. Com doze anos, já, ela entrava nos bananais, decorava as doutrinas que ouvia nas catequeses e fazia finason. Aos dezassete anos, estreou-se publicamente. Ela cantou em muitas festas de casamento e ‘‘finason’’ (festas de santos), e contracenou com muitas cantadeiras de renome de finason.
Como tínhamos afirmado atrás, o finason retrata, na sua letra, vários aspetos sociais, económicos e culturais da nossa sociedade, ou mesmo a situação política do nosso país.
Evocando, por exemplo, algumas passagens de finasons de Nha Násia, é fácil verificar isso.
Sobre a psicologia e a pedagogia do santiaguense, por ex: Ela diz: — Rapás di Mozinha Baréla:/Ma nômi sabe, subsnomi dósi… Nomi dadu,. subsunómi kontra/ Keló ki N da rinkada, ki N ba ti la/ki N ba ti la, N torna rabida/Ka bu sana-m ku lensu burmedju, /Sana-m so ku lensu sodadi… /Purk’e ta noxa-m korason/… e ainda a segunda estrofe:
“— Ah fidju mátxu (l)/./N ten un fabor pa N pidi-bo/Keló ki bu odja algen la/Ka bu fla me algen, pamo dentu di algen ki mora algen 1/Pabia di k’e’?/Un ben pa bira mal e más faxi ki un mal pa bira ben…”
É claro que há muito mais a mostrar a esse respeito através dos “finasons” de Nha Nasia Gomi, mas analisar e mostrar todas as passagens belas deste livro é assunto que aqui não cabe. Só lendo o livro, mesmo. Entretanto, não resistimos à tentação de fazer mais algumas referências e transcrições que achamos muito interessantes e merecedoras de figurarem aqui, tanto mais não seja, como forma de chamar a atenção do leitor.
Se em passagens, ainda como… “fika sabendo ma es mundu e ka di nos/Porkazu un dia/nos nu ten kónta pa nu da… /Ma sima disizu sta na papel e si ki verdadi sta na caneta, parse-m ma ninguen ka fla me ka si (finason -1-est -21), em outras encontramos uma chamada de atenção para a responsabilidade e prudência, e evocando agora passagens de finason – II, deparamos com uma visão do mundo ligada à vida da autora do finason, embora inserida em tudo o que a rodeia. E é fácil também, nela apreender algumas imagens de índole social, política, cultural e religiosa, como esta: – Ai,.. Ai Násia Gomi/ ..,/Ami Násia Gomi, lovadu seja, grasas a Deus . – /Sinhor Deus, mi N ka atxa mal//Viva pa povu kauberdianu” (finason-II-estrofe-1) “-Agora, kusa ki mi N ta fla-s /Ami, Násia/Ki mi N ta fla/ N ka ta bá mas:/Nen na korda, nen na korenti// Nen na nabiu, nen na lantxon nen na /baril bóka tanpadu// Tudu modi si mininu parse ku mi/ Pa manda toma: e debe ntrega//Ah Násia Gomi… ai-ai-ai” /(finason- II – est-79).
É claro que os excertos aqui apresentados não são os mais representativos desses finasons di Nha Nasia, pois, a plasticidade rítmica das palavras que povoam este livro (nos finasons), a linguagem encantatória, a verdade sã e pura das imagens utilizadas, o frescor ágil das cadências, das mudanças de ritmos e de temas são qualidades intrínsecas a toda a poética desses finasons, que cativam, certamente, qualquer um, e que deviam ser conhecidos daqueles novos arautos e bardos das novas trovas que têm pautado a realidade musical cabo-verdiana, quiçá como forma de aprendizagem e interiorização de um modus faciendi mais original e genuíno, já que há semelhanças nos ritmos e melodias e nas rimas, também, quando mais naturais e não forçadas como os exemplos de alguns que conseguiram um bom desempenho, tal o exemplo do Tabanka Resa, com a reformulação das ladaínhas em música popular, de Pantera, de Princesito e de alguns outros músicos da nossa praça.
Sem dúvida alguma, Finasons di Nha Nasia Gomi é um livro com muito para se apreciar
Danny SPÍNOLA